domingo, 16 de abril de 2006

A opinião


Há vinte e cinco anos atrás, em abril, lançado com imenso aparato publicitário a anteceder sua aparição, Crónica de una muerte anunciada rompia o silêncio de Gabriel García Márquez, com tiragens surpreendentes: mais de dois milhões de exemplares na Colômbia, pela La Oveja Negra, além daqueles publicados pela Sudamericana da Argentina, Bruguera da Espanha e Diana do México.

            Caso raro entre os romancistas do Continente, ter assinado mais do que uma obra-prima, neste breve romance, Gabriel García Márquez alcançará, como definiu o seu muito cuidadoso e detalhista biógrafo, Dasso Saldívar, a suave e tranqüila perfeição. Relato harmonioso no qual personagens se esboçam em definitivas poucas frases e em admirável sintonia com a atmosfera de coscuvilhice que domina a pequena cidade e a faz responsável pelo crime que, submissos aos códigos de honra, os irmãos Viriato iriam cometer. Para vingar a irmã, em cuja confissão acreditaram quando foi levada a declinar o nome do homem que a havia desonrado, sem, verdadeiramente o querer, assumem o fado de acabar a golpes de punhal com aquele de quem haviam sido amigos e sem que houvesse alguém – cada um com suas razões – para impedi-lo.
 

            Encerrada entre as cinco e meia e sete e cinco, da manhã, em que foi retalhado como um porco, a narrativa flui lenta, em espirais, alternando o presente da ação com vários níveis do passado, justapondo asserções que se negam como convém aquela que dá conta do que aconteceu num passado distante. Vinte e sete é o tempo contabilizado pelo narrador ao mencionar a evocação de Santiago Nasar, ainda com vida, pela mãe, naquela segunda feira ingrata. E que, na verdade, é quase o tempo que passou entre o acontecido e o seu transformar-se em obra de ficção.

            Crónica de una muerte anunciada foi publicado trinta anos depois da morte de Cayetano Gentile Chimento, ocorrida no dia 22 de janeiro de 1951. Era um estudante de medicina, vivia em Sucre e era amigo de Gabriel Gárcia Márquez. O escritor já morava em Barranquilla e, usando o pseudônimo de Séptimos, assinava a coluna “La Jirafa” no jornal El Heraldo. Ao saber da morte do amigo pensou viajar a Sucre e reconstituir o crime para uma reportagem que nunca chegou a ser feita. Sua mãe, descobrindo suas intenções, lhe pediu que nada escrevesse enquanto a mãe do moço assassinado, que era sua comadre, estivesse viva. Em Vivir para contarla, Gabriel García Márquez lembra que nenhum argumento a convenceu do contrário e que ele achou uma falta de respeito escrever sem a sua permissão. Um compromisso do qual somente foi libertado quando ela mesma lhe telefonou para Barcelona, onde então morava, para  dar a infausta notícia da morte de sua amiga. Dois anos depois, Crónica de una muerte anunciada estava publicada, mas ela não quis ler o que o filho escrevera, convicta de que uma coisa que saiu tão mal na vida não pode sair bem num livro. No entanto, o que acontecera – perseguido pelos dois irmãos, Cayetano Gentile Chimento procurou refúgio na sua casa onde a mãe, certa de que já estivesse no  quarto, trancou a porta da rua, deixando-o à mercê dos golpes que o mataram – além da tristeza que sentiu, o fez entender o crime como uma tragédia de responsabilidade coletiva: não somente Margarita Chica Salas, a moça que nomeara o responsável pela sua honra, embora ninguém ignorasse que tal honra não fosse tão intocada, não era a única culpada pela morte, mas a cidade inteira. Um tema que o irá acompanhar por muito tempo – não se passava um dia em que não tivesse desejos de escrever sobre ele – até que um dia, no aeroporto de Argel, quando a porta de saída se abriu e deixou passar um príncipe árabe, levando no punho um falcão amestrado, lembrou-se de seu amigo Cayetano Gentile que aprendera de seu pai a arte de altanaria. A partir de então, percebeu que não teria paz enquanto não lhe escrevesse a história. Seguiu o sinuoso caminho das lembranças, aceitou fatos e imagens que as circunstâncias de vida lhe ofereceram, entrelaçou o trágico e o burlesco ao retratar os humanos e, contradizendo o prognóstico materno, escreveu um de seus livros mais  fascinantes.

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