Um
século e dois anos depois, num romance brasileiro, aparece o testemunho de que
essa modernização, apregoada por Carlos Reyles que, na verdade, não fora aceita
no Uruguai, pese a sua vocação pastoril, apesar do tempo transcorrido, tampouco
chegara aos campos do sul. Orual Soria Machado, em seu romance, Os náufragos
da terra (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1996), dizem os editores, resgata
para a ficção o drama dos sem-terra. E o faz no relato de sua chegada, centenas de pés nus ou mal calçados, ao
município até o momento em que se inicia a ação para desalojá-los. Nas
descrições e nos diálogos, muito claras as imagens dos mundos que se opõem – o
luxo supérfluo do palácio episcopal, o conforto de uma casa rica, a degradação
dos prédios do governo, a precariedade
reinando no acampamento dos sem-terra – completados por figuras, cujos perfis
são traçados a partir de gestos: o funcionário público escarrapachado num sofá lateral,
limpava as unhas com um canivete; na visita do prefeito ao bispo, um leve simulacro de beijo no anel episcopal; no clube manoplas manejavam cartas com uma destreza já amortecida pela hora ou pela bebida, diante da fome dos
filhos os sem-terra passavam ansiosos a
mão nos cabelos, pitavam intermináveis cigarros raquíticos, cismavam. Nos
diálogos, insistente, o assunto é a imprevista e indesejada presença dos
sem-terra. Expõem-se razões, feitas de repúdio e ameaças; tentam-se defesas e,
então, as palavras não parecem cair em terreno fértil; ou, evidencia-se a
hipocrisia dos mandantes que se subtraem às decisões e adiam soluções. Um
emaranhado de argumentos que, nas vozes do prefeito, do presidente da União
Ruralista, do agrônomo subordinado ao Instituo de Pesquisas Agropecuárias, do
bispo, do padre que acompanha os sem-terra, dos seus representantes expressam
os conflitos decorrentes do embate opondo os que possuem (qualquer ameaça às propriedades rurais seria rechaçada com vigor) e
os que precisam possuir (-Somos colonos
procurando conseguir um pedaço de terra como vocês têm. Se a propriedade é
coisa boa, nós queremos também uma para nós). Entre eles, os mediadores,
aparentemente solidários (Fiquem
tranqüilos, mantenham a ordem e logo
chegará auxílio) quando, apenas fazem parte do jogo de inútil retórica e
permanecem, sobretudo, alheios diante do que ocorre (-Seu prefeito, já tem gente passando
fome). E, também aqueles que, impotentes, se dão conta dos absurdos que
alimentam a inaceitável desigualdade social (Que se estava fazendo neste país para aparecerem chagas sociais tão extensas) ou que, lúcidos, percebem
os descaminhos administrativos do governo e a ignorância dos proprietários
rurais, tanto na lavoura como na criação de gado a impedir resultados
positivos. Assim, o gado, com as coxilhas
crestadas pela geada, mal se rebuscava de alguma sobre de pasto ou forrageira
resistente nas canhadas. Os proprietários não se preocupavam com ele,
atribuindo a Deus ou simplesmente ao
tempo, a ferocidade de um ano ruim. Poucos conheciam as técnicas modernas de
pastoreio ou de ensilagem para os meses de inverno ou se preocupavam com a
fertilidade do rebanho. Uma ignorância malsã ou uma acomodação perniciosa, já
constatada por Calos Reyles, cuja conseqüência não se restringe ao prejuízo
sofrido pelos donos das terras. Porque assim como as terras improdutivas, as
carcaças de gado morto pontilhando os campos deixam de alimentar milhares de bocas neste país.
domingo, 29 de janeiro de 2006
Discursos didáticos na ficção
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