domingo, 8 de janeiro de 2006

A noite perpétua

            Em outubro de 1948, na sua trajetória de jornalista recém-iniciada, Gabriel García Márquez, ao escrever sobre Uma heroína de papel de Rafael Marriaga, (comentário que faz parte de Textos Costeños), se refere à época em que se passa, no seu país, a ação do romance: a dramática realidade de um mundo torturado, mordido pela fome e rebeldia, condenado à noite perpétua de um regime retardatário [...]. O seu texto, escrito há mais de cinqüenta anos e se reportando ao tempo da Colônia, parece, no entanto, ter origem nos dias atuais e relação com todos os países do Continente. Porque, se no Continente, houve a época terrível das ditaduras, fixada por alguns escritores latino-americanos, o advento das assim chamadas democracias, além do simulacro de liberdade, constituído pelo jogo eleitoral, não resultou em benefício para a maioria de seus habitantes. E tudo continuou sendo – apenas mascarado pela tentativa de acenar com esperanças – o que sempre foi.
 

            Assim, Gabriel García Márquez jamais deixou de dardejar suas farpas sobre os políticos de seu país o que vale dizer – ressalvadas as sempre raras exceções –  sobre qualquer político de qualquer país latino-americano. O relato que faz sobre as fórmulas de circo, isto é o desvario da campanha eleitoral de um senador, no conto “Muerte constante más allá del amor”, mais do que uma grande troça é um testemunho. Parte do livro La increíble y triste historia de la cándida Eréndira y de su abuela desalmada, publicado em 1972, como o indica o título é uma história de amor. O amor de Onésimo Sánchez por Laura Farina. Tinha ela dezoito anos e ao vê-la com os cabelos enfeitados por laços coloridos, ficou sem fôlego, pois, ainda que vestida com uma bata gasta e barata, era possível supor que não havia outra mais bela no mundo.

            Onésimo Sánchez era senador e fora, mais uma vez, como sempre, a cada quatro anos, em campanha eleitoral a Rosal del Virrey. Um povoado onde à noite atracavam os barcos dos contrabandistas e que à luz do dia se mostrava como “o canto mais inútil do deserto, diante de um mar árido e sem rumo. Pela manhã, antes dele, haviam chegado os furgões para a encenação que se seguiria e, logo, os caminhões com os índios de aluguel que eram levados pelos povoados para completar a assistência dos comícios. Mais tarde, em meio à músicas e a foguetes, ele chegou no carro do ministério que tinha ar condicionado e cor de refresco de morango. Depois de descansar, voltou a aparecer em público e, da tribuna, recitou o discurso que sabia de cor e que já fora, tantas vezes, repisado. Começou dizendo que estavam ali reunidos para derrotar a natureza e que não mais seriam os enjeitados da pátria, os órfãos no reino da sede e da intempérie [...], para prometer grandeza e felicidade. Enquanto isso, seus ajudantes jogavam para o alto passarinhos de papel, tiravam dos furgões umas árvores de teatro com folhas de feltro e as semeavam atrás da multidão no solo de salitre e armavam uma fachada de papelão onde casas de tijolo vermelho com janelas de vidro se desenhavam para esconder os ranchos miseráveis da vida real.

            Para dar tempo de que tal cenário fosse armado, o senador prolongou o seu discurso com citações em latim e com mais promessas estéreis e tão fantasiosas como o seu mundo inventado que mostrou, com o dedo para os que o escutavam. Somente ele se deu conta de que de tanto ser montado e desmontado, o seu mundo de ficção já era quase tão pobre e empoeirado e triste como o Rosal del Virrey. Qualquer um que  o desejasse poderia ver o reverso da farsa: as escoras dos edifícios, as armações das árvores. Porém, poucos os que estariam entre os principais da cidade para escutar, entre quatro paredes, suas palavras: Os senhores e eu sabemos que no dia em que existam flores e árvores neste covil de bodes [...] nem os senhores nem eu teremos nada para fazer aqui.[...] Então não preciso repetir o que já sabemos de sobra: que a minha reeleição é melhor negócio para os senhores do que para mim porque eu estou até aqui de águas podres e suor de índios e, ao contrário, os senhores vivem disso.

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