
Um
depoimento sobre o que foi apenas o incipiente começo das práticas que iriam
ocorrer depois: interrogatórios baseados na tortura, violências, desaparecimentos,
mortes. Porque Salim Miguel permaneceu na cadeia quarenta e oito dias. Em
relação a outros presos políticos do período ditatorial, foi uma pena leve o
que não significa terem se constituído, para o indivíduo que nenhuma infração
havia cometido a não ser a de possuir idéias próprias, um castigo injusto e
inaceitável: ser privado da liberdade sem culpa formada e por elementos que não
sabiam exatamente o porquê do que estavam fazendo e comandados por outros que
tampouco possuíam condições de mensurar
seus próprios atos e agiam sob o impulso da obediência cega e servil, não tendo
como justificativas mais do que uns gastos chavões.
Um
dos capítulos tem por título “A fogueira” e trata não de uma fogueira qualquer
mas da que foi alimentada por livros considerados grandes inimigos do sistema,
uma vez que seus esbirros eram incapazes de discernir conteúdos e muito menos
de aceitar que pudessem existir formas diferentes de pensar que não a deles,
calcadas somente em algumas poucas frases.
Quando
os livros foram queimados, a notícia se espalhou por ouvir dizer e, talvez, nem
tenha sido veiculada pelos meios de comunicação. Assim, o testemunho de Salim
Miguel sobre o espetáculo insano e
macabro, ainda que tenham se passado quatro décadas, é estarrecedor. A
Livraria Anita Garibaldi, situada no centro de Florianópolis, que havia sido de
sua propriedade, foi arrombada, centenas de livros jogados na rua e queimados.
Confundindo-se no fogo que os consumia, O capital de Karl Max, A
capital de Eça de Queirós, O vermelho e o negro de Stendhal e Seara
Vermelha de Jorge Amado, Memórias do cárcere de Graciliano Ramos, O
príncipe de Maquiavel, Pinocchio de Collodi, O livro dos
médiuns de Allan Kardec, Pintura quase sempre de Sérgio
Millie. As palavras de ordem comandam,
provocam, açulam, buscam incentivar
[..] a que mais livros sejam trazidos, jogados no fogo pois nenhum deles
deve sobrar.
Salim Miguel,
preso, não soube de que maneira começara o fogo, nem o tempo que havia durado,
consumindo as obras mais diversas. Atraídos pelas chamas e pela fumaça e
palavras de ordem, o número de curiosos aumenta. Uns, sem entender, se mostram
indiferentes diante das chamas; outros, indignados, sentem-se impotentes;
poucos, esboçam um gesto de repulsa. De inegável, apenas, o momento de trevas, buscando estabelecer o fim da liberdade de
expressão e do direito de escolha.E a
notícia do crime, retransmitida de boca em boca, em meio ao terror, de vento em
vento levada para longe.
No
cenário, ficaram as cinzas. E a pergunta, pertinente, imprescindível: Será mesmo que os infelizes acreditavam que
a força do fogo seria suficiente para extirpar a força das idéias?
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