domingo, 22 de janeiro de 2006

A fogueira


            Ao contar em Primeiro de abril: narrativas da cadeia a sua experiência como preso político em 1964, Salim Miguel entrelaça o tempo e as vozes do relato, recursos que remetem ao ficcionista que ele é, autor de romances (Rede, A voz submersa, A vida breve de Sezefredo das Neves) e de contos (Velhice e outros contos, Alguma gente, O primeiro gosto, A morte do tenente e outras mortes, As areias do tempo). Como o subtítulo deste seu livro, publicado pela José Olympio em 1994, o indica, trata-se de uma obra feita de textos unidos por um fio condutor, mas que podem ser independentes entre si: são dezesseis capítulos ou módulos autônomos como os define Moacir Wernek de Castro. Relatam a sua prisão no dia primeiro de abril de 1964,  o seu cotidiano na cadeia, o interrogatório a que foi submetido e o que ocorreu quando foi posto em liberdade: a alegria de sair da cadeia, a constatação de que existem vários tipos de liberdade.Três desses capítulos descrevem os tipos com os quais conviveu no alojamento em que ficaram confinados . 

            Um depoimento sobre o que foi apenas o incipiente começo das práticas que iriam ocorrer depois: interrogatórios baseados na tortura, violências, desaparecimentos, mortes. Porque Salim Miguel permaneceu na cadeia quarenta e oito dias. Em relação a outros presos políticos do período ditatorial, foi uma pena leve o que não significa terem se constituído, para o indivíduo que nenhuma infração havia cometido a não ser a de possuir idéias próprias, um castigo injusto e inaceitável: ser privado da liberdade sem culpa formada e por elementos que não sabiam exatamente o porquê do que estavam fazendo e comandados por outros que tampouco possuíam  condições de mensurar seus próprios atos e agiam sob o impulso da obediência cega e servil, não tendo como justificativas mais do que uns gastos chavões.

            Um dos capítulos tem por título “A fogueira” e trata não de uma fogueira qualquer mas da que foi alimentada por livros considerados grandes inimigos do sistema, uma vez que seus esbirros eram incapazes de discernir conteúdos e muito menos de aceitar que pudessem existir formas diferentes de pensar que não a deles, calcadas somente em algumas poucas frases.

            Quando os livros foram queimados, a notícia se espalhou por ouvir dizer e, talvez, nem tenha sido veiculada pelos meios de comunicação. Assim, o testemunho de Salim Miguel sobre o espetáculo insano e macabro, ainda que tenham se passado quatro décadas, é estarrecedor. A Livraria Anita Garibaldi, situada no centro de Florianópolis, que havia sido de sua propriedade, foi arrombada, centenas de livros jogados na rua e queimados. Confundindo-se no fogo que os consumia, O capital de Karl Max, A capital de Eça de Queirós, O vermelho e o negro de Stendhal e Seara Vermelha de Jorge Amado, Memórias do cárcere de Graciliano Ramos, O príncipe de Maquiavel, Pinocchio de Collodi, O livro dos médiuns de Allan Kardec, Pintura quase sempre de Sérgio Millie. As palavras de ordem comandam, provocam, açulam, buscam incentivar [..] a que mais livros sejam trazidos, jogados no fogo pois nenhum deles deve sobrar.

Salim Miguel, preso, não soube de que maneira começara o fogo, nem o tempo que havia durado, consumindo as obras mais diversas. Atraídos pelas chamas e pela fumaça e palavras de ordem, o número de curiosos aumenta. Uns, sem entender, se mostram indiferentes diante das chamas; outros, indignados, sentem-se impotentes; poucos, esboçam um gesto de repulsa. De inegável, apenas, o momento de trevas, buscando estabelecer o fim da liberdade de expressão e do direito de escolha.E a notícia do crime, retransmitida de boca em boca, em meio ao terror, de vento em vento levada para longe.

            No cenário, ficaram as cinzas. E a pergunta, pertinente, imprescindível: Será mesmo que os infelizes acreditavam que a força do fogo seria suficiente para extirpar a força das idéias?

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