No
dizer dos editores, a tela de fundo sobre a qual se constrói a obra de Serge
Elmalan, Nicolas de Villegagnon ou L‘Utopie tropicale (Favre, Lausanne,
2002) é constituída pelos três grandes temas dominantes da Renascença: o cisma
religioso, as grandes descobertas marítimas e o antagonismo entre os Valois e
os Habsbourgs. Como o título o indica, Nicolas de Villegagnon, personagem fascinante, é o fio condutor
dessa aventura que foi a França Antártica e que se inscreve entre outubro de
1555 e janeiro de 1568. Quarenta capítulos compõem o relato, feito de muitos,
exaustivos e intermináveis diálogos sobre as questões políticas e religiosas
que envolviam a França com seus aliados e opositores. Entre eles, vinte e dois
tem por assunto o Brasil: a cidade de Henriville e o Forte Coligny, criados
para assegurar a presença francesa no Brasil. E é pelo olhar de Nicolas de
Villegagnon e de seus pares que o país irá se mostrar, delineado em traços de
sua paisagem, na presença de seus animais ou em algum perfil indígena. São
formas arredondadas de montanhas distantes, extensões de areias litorâneas; são
ruídos de uma orquestra invisível,
feita de milhares de gorjeios diferentes, são os odores das folhas e dos
troncos, os movimentos dos pássaros: papagaios coloridos, tucanos de gritos
estridentes, pegas de extraordinários pescoços alaranjados, pombas com o bico
escuro. São as pegadas deixadas pelos animais nas areias do rio: as do jaguar,
sensuais e como marcas de gato; da anta, largas e com três dedos; os curiosos
pés da capivara. Destacados, dois indígenas que não se indispõem contra a
presença estranha. Mahire, o jovem índio que serve de guia a Nicolas de
Villegagnon e sua gente quando se adentram nas florestas: um índio corajoso e de toda a
confiança que surpreende pelas relações que mantém com a natureza e sua maneira
de imitar o canto dos pássaros, o grito de certos animais, de ler os sinais que
pareciam escritos claramente para ele
nesse intrincado universo de verdor. E Cunhambembe, o de curioso nome, chefe dos Tupinambás, mostrado no adorno de suas grandes
plumas antes de serem anunciadas as suas qualidades de personagem vigoroso,
cheio de astúcias, capaz de falar durante horas e de expressar uma rara
sabedoria: que os gestos mais humildes da
vida podem ter a mesma graça insinuante que as atividades superiores. Reina
numa região imensa e misteriosa que lhe aceita as múltiplas atribuições: prever o futuro, interpretar os presságios,
impedir os elementos de prejudicar os homens, atrair a caça, repartir a força
mágica para aqueles que tivessem necessidade, organizar as cerimônias e as
danças. Villegagnon se felicita de tê-lo como aliado. E o frade Thévet
guarda a esperança de convertê-lo. Porque, embora houvesse cordialidade no
trato, esses franceses, chegados no Novo Mundo, traziam os projetos bem claros
e definidos para tomar a terra e nela estabelecer um comércio, baseado na
extração das riquezas e não se privam de querer impor suas verdades, tentando
estabelecer o traje para esconder a nudez, procurando provar a excelência de
seu deus.
Assim,
ainda que os marinheiros que haviam sido abandonados no litoral para aprenderem
a língua dos índios ou os desertores que Nicolas Villegagnon encontrou ao
chegar, tenham aceitado o ardor do clima e a sensualidade tropical, e,
anarquistas insubmissos aos entraves sociais, abandonado os velhos princípios
europeus que, para eles, não possuíam mais valor, guardaram algo da velha Europa.
Montavam comércios lucrativos, provocavam naufrágios de barcos ou os capturavam
com uma insolência de piratas. Com
eles, diz Serge Elmalan, nascia o Novo Mundo. Mas, entre eles houve os que, à
beira mar, conduzidos pela saudade, fizeram um jardim civilizado a oferecer em
meio à natureza selvagem e exuberante, o
contraste de uma superfície estranhamente arrumada em maciços de flores e
labirintos intrincados de um verde cortado com rigor.

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