domingo, 15 de janeiro de 2006

O jardim

    
        No dizer dos editores, a tela de fundo sobre a qual se constrói a obra de Serge Elmalan, Nicolas de Villegagnon ou L‘Utopie tropicale (Favre, Lausanne, 2002) é constituída pelos três grandes temas dominantes da Renascença: o cisma religioso, as grandes descobertas marítimas e o antagonismo entre os Valois e os Habsbourgs. Como o título o indica, Nicolas de Villegagnon, personagem fascinante, é o fio condutor dessa aventura que foi a França Antártica e que se inscreve entre outubro de 1555 e janeiro de 1568. Quarenta capítulos compõem o relato, feito de muitos, exaustivos e intermináveis diálogos sobre as questões políticas e religiosas que envolviam a França com seus aliados e opositores. Entre eles, vinte e dois tem por assunto o Brasil: a cidade de Henriville e o Forte Coligny, criados para assegurar a presença francesa no Brasil. E é pelo olhar de Nicolas de Villegagnon e de seus pares que o país irá se mostrar, delineado em traços de sua paisagem, na presença de seus animais ou em algum perfil indígena. São formas arredondadas de montanhas distantes, extensões de areias litorâneas; são ruídos de uma orquestra invisível, feita de milhares de gorjeios diferentes, são os odores das folhas e dos troncos, os movimentos dos pássaros: papagaios coloridos, tucanos de gritos estridentes, pegas de extraordinários pescoços alaranjados, pombas com o bico escuro. São as pegadas deixadas pelos animais nas areias do rio: as do jaguar, sensuais e como marcas de gato; da anta, largas e com três dedos; os curiosos pés da capivara. Destacados, dois indígenas que não se indispõem contra a presença estranha. Mahire, o jovem índio que serve de guia a Nicolas de Villegagnon e sua gente quando se adentram nas florestas: um índio corajoso e de toda a confiança que surpreende pelas relações que mantém com a natureza e sua maneira de imitar o canto dos pássaros, o grito de certos animais, de ler os sinais que pareciam escritos claramente para ele nesse intrincado universo de verdor. E Cunhambembe, o de curioso nome, chefe dos Tupinambás, mostrado no adorno de suas grandes plumas antes de serem anunciadas as suas qualidades de personagem vigoroso, cheio de astúcias, capaz de falar durante horas e de expressar uma rara sabedoria: que os gestos mais humildes da vida podem ter a mesma graça insinuante que as atividades superiores. Reina numa região imensa e misteriosa que lhe aceita as múltiplas atribuições: prever o futuro, interpretar os presságios, impedir os elementos de prejudicar os homens, atrair a caça, repartir a força mágica para aqueles que tivessem necessidade, organizar as cerimônias e as danças. Villegagnon se felicita de tê-lo como aliado. E o frade Thévet guarda a esperança de convertê-lo. Porque, embora houvesse cordialidade no trato, esses franceses, chegados no Novo Mundo, traziam os projetos bem claros e definidos para tomar a terra e nela estabelecer um comércio, baseado na extração das riquezas e não se privam de querer impor suas verdades, tentando estabelecer o traje para esconder a nudez, procurando provar a excelência de seu deus.
            Assim, ainda que os marinheiros que haviam sido abandonados no litoral para aprenderem a língua dos índios ou os desertores que Nicolas Villegagnon encontrou ao chegar, tenham aceitado o ardor do clima e a sensualidade tropical, e, anarquistas insubmissos aos entraves sociais, abandonado os velhos princípios europeus que, para eles, não possuíam mais valor, guardaram algo da velha Europa. Montavam comércios lucrativos, provocavam naufrágios de barcos ou os capturavam com uma insolência de piratas. Com eles, diz Serge Elmalan, nascia o Novo Mundo. Mas, entre eles houve os que, à beira mar, conduzidos pela saudade, fizeram um jardim civilizado  a oferecer em meio à natureza selvagem e exuberante, o contraste de uma superfície estranhamente arrumada em maciços de flores e labirintos intrincados de um verde cortado com rigor.

             

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