A reunião estava terminando como o entardecer que cede lugar a uma noite assombrada por prenúncios de tempestade. No salão nobre da Prefeitura, ao redor da mesa, o prefeito, o bispo, o superintendente do Incra, o enviado do governador, o presidente da Associação Rural. E os representantes dos sem-terra a expor a situação em que viviam sob as lonas – inverno rigoroso que a fome e as doenças tornavam difícil – não minorada, pois o governo apenas prometia. Como resposta, obtiveram somente promessas a conduzir, ainda outra vez, a um incômodo impasse. Todos compreendiam que as palavras haviam se esgotado. Páginas antes, Orual Soria Machado tinha descrito a marcha dos sem-terra. Um guri que viajava com a mãe, do ônibus, vira a multidão caminhando pela beira da estrada: parece uma baita lagarta, dissera. Como que surgida da terra doente dos agrotóxicos e enjoada da monocultura, acrescentara o narrador, ela subia e descia colinas, atravessava riachos e acompanhava a mancha escura do asfalto que, por vezes, não podendo evitar, invadia, pagando com a vida qualquer atrevimento ou descuido. Quando já havia percorrido mais de dezoito quilômetros, no fim da tarde, parara perto de uma pequena cidade, deixando para trás três pontes, dez pontilhões, dezoito mil metros de fios, mais de cinco mil tramas e mourões. E só depois de muita andar é que os sem-terra chegaram à Fortaleza dos Amparados, ajeitando-se, nas aforas, perto de um mato de eucaliptos. Seu acampamento é dado a conhecer pelos olhos da comissão de autoridades que até lá fora para conhecer a extensão do problema. Logo ao chegar, o bispo enxergou uma sucessão escura e indefinida de barracos que se perdiam entre as árvores. Cobertos com plásticos negros e guarnecidos por ramas e capim santa-fé, eram frágeis refúgios contra a chuva e os ventos. Pelos caminhos estreitos, as autoridades foram vendo a miséria – colchão de macegas, cobertores ralos, poucos utensílios de cozinha – e o seu resultado nas mulheres mal nutridas, amamentando crianças com fome, pessoas com tosse, meninos descalços, subnutridos. O narrador diz que a penúria e o desamparo cutucavam os nervos amortecidos da comissão que mergulhava lentamente nessa mancha dolorosa como quem se abriga a atravessar um pântano e ouvindo dizer que estava faltando tudo: o leite, o arroz, o feijão, cobertores, roupas, remédios. Ao chegar à metade do acampamento já farta do que via, a comissão não quis continuar. O prefeito, como se acabasse de vislumbrar centenas de eleitores ávidos de sua oratória fez promessas e promessas fizeram os representantes do governo e do Incra. As do prefeito e da Diocese – sacos de cereais, agasalhos, utensílios de cozinha, madeira, lona – demoraram três dias, algumas horas e um mundão de minutos para chegar. As do governo do estado e as do Incra, porém, se dissolveram no passar do tempo e nas razões que ninguém ignora: todos também sabem que o estado enfrenta dificuldades econômicas e as negociações levam tempo, existem procedimentos legais da União que precisam ser respeitados. A quantia que o Governo Federal destinara para cada família de colonos atrasara por problemas burocráticos; ajuda das associações comunitárias e da Igreja diminuía e os ventos fortes destruíam barracos. Fortaleza dos Amparados festejava a inauguração da XXX Feira Agropecuária do Município. As autoridades e os que participavam das atividades econômicas da região estavam ocupados com prêmios, negócios, festejos. Perto dali, com sua fome e seu desamparo, era como se os sem-terra não existissem. Assim, suas perguntas cismentas ficaram sem resposta: como poderiam confiar nos governos ou acreditar nos desígnios de Deus, se a razão daquela luta toda – a família – minguava e morria de inanição em meio aos campos verdes, à gadaria gorda e a muita terra fértil para plantar.
Náufragos
da terra os chama Orual Soria Machado,
expressão que dá título a seu
romance (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1996): obra de ficção, ele diz, no qual
as coincidências com fatos, nomes e situações, devem ficar por conta de todo o
surrealismo que vivemos neste país e na América Latina, onde é difícil separar
a imaginação da realidade.

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