domingo, 12 de fevereiro de 2006

O olhar e seu personagem


            Desolação, reeditado em 2005, pela Planeta do Brasil, relata os dissabores de três amigos, que se propondo a um breve passeio até o litoral, se vêem obrigados a prolongá-lo devido a defeito no motor do pequeno caminhão em que viajavam. Para um deles, Maneco Manivela, se inicia, então, uma outra aventura: a de se ver (ou assim acreditar) vigiado por um elemento policial a serviço da repressão.

            Publicado pela primeira vez em 1944, o romance de Dyonélio Machado, mais do que narrar as peripécias em que se envolveram os três amigos, quer registrar o clima de insegurança e temor em que viviam alguns brasileiros sob o signo da ditadura que dominava o país. Paralelamente às andanças do grupo, visando o conserto do caminhãozinho, vai-se instalando em Maneco Manivela o medo de ser preso o que ele não compartilha com ninguém. Drama a conduzir o relato feito, sobretudo, de ambigüidades entre as quais, muitas vezes, a ausência de palavras que expressem a angústia, as dúvidas, a insegurança de Maneco Manivela, são  substituídas pelo olhar. Pelo olhar irão se esboçar os personagens e, pelo olhar irão se estabelecer significados reais ou presumidos.

            Assim, é somente o olhar que marca a presença de personagens efêmeros, apenas mencionados: o mecânico da oficina, onde os amigos foram tentar a compra da embreagem, olhara o tempo todo para eles com uns olhos sorridentes, malandros; o rapaz moço e mal vestido que, na rua, se prontificou a empurrar o caminhão, cujo motor não pegava, tinha um olhar vivo, franco; o outro rapaz, parado perto de um portãozinho, do outro lado da rua e para o qual Maneco Manivela olhara superficialmente, tinha o pé direito, levantado, posto sobre uma saliência do muro e o olhar abaixado, preso a esse pé. Também é o olhar que definirá os sentimentos e emoções de Luiz e de Leo, os companheiros de Maneco Manivela. Luiz, ao escutar uma combinação a ser feita, a fim de negociar a peça que faria o pequeno caminhão funcionar, volta a ter o seu olhar redondo, inquisitivo, admirativo e, em determinado momento, se lembra do olhar do irmão, trabalhando no bar de que eram donos: suspicaz e intolerante, devassando tudo. Irritado, diante de um dos impasses para consertar o carro, olha para Maneco Manivela com um “olhar impaciente e interrogativo; face à tensão de Maneco Manivela com a chegada ao hotel, vindo de Porto Alegre, de um sujeito, cuja presença o intrigara, várias vezes ergue rápido o olhar para o companheiro de viagem, um olhar que espreita os seus gestos, uma provável ação de sua parte. Admirado com a notícia que o Dr. Matos fora preso, os seus olhos fuzilam enquanto Leo, o outro amigo, apenas levanta vivamente os olhos. Porém será um olhar intrigado e um tanto súplice que Leo irá lançar a Maneco Manivela quando ele entra no quarto do hotel e o surpreende contando a Luiz a prisão de um motorista. Olhar que se repete enquanto vai dizendo o que sabe; esperando uma decisão sobre o conserto necessário, tem o olhar suspenso da cara de Manivela. E curioso, se mostrará ao se defrontar com a casa cor-de-rosa de frisos brancos, procurando ver o seu interior, erguendo o olhar furtivamente para a janela entreaberta. Chico Galinha, o dono da casa, que oferece guarida para o pequeno caminhão, ao acompanhar o grupo até a oficina onde pretendiam comprar a embreagem, tem o olhar que fuzila, alerta e ainda com o grupo, olhando para o céu, comenta que irá chover. Sob a ramada de seu jardim, estacionado, o pequeno caminhão. Quando por ele passam, ao entrar na casa, todos lhe deitam um olhar.

            Tais zonas de sombra, tais descrições em que apenas um gesto, uma frase, são suficientes para conferir ao personagem uma vigorosa presença, ao se enlaçar à intrincada teia de olhares – origem de interpretações, suposições e certezas – aprisionarão Maneco Manivela numa trama desconcertante e fugidia .

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário