
Em
Relato de um certo Oriente (Companhia das Letras, 1989, 2005), seu
belíssimo livro de estréia, Milton Hatoum anota fragmentos de um cenário e seus
atores que, miseráveis, formam um mundo diferente daquele encerrado no espaço
da casa onde se abrigam os seus personagens. Mundos separados por um abismo,
como o constata a narradora ao percorrer a cidade
proibida, porque habitada por homens bêbados e mulheres ladras ou
prostitutas e ao deter o seu olhar nas ruelas de Manaus, cujo traçado era uma geometria confusa, e o rio, sempre o rio, era o ponto de
referência, era a praça e a torre da igreja que ali inexistiam; nas
fachadas de madeira, pintadas com as cores espalhafatosas; nos enxames de crianças nuas e sujas, agachadas
sob um céu sinuoso de redes coloridas’; nas mulheres amamentando os filhos,
entre nuvens de moscas; na praia de
imundícies, de restos de miséria humana; nos homens que brigavam entre si, cicerones andrajosos, de cujos corpos
mutilados e rostos deformados com
suas vozes que buscavam imitar alguma
frase, talvez em inglês.
Mas
é a figura de Anastácia Socorro que assinala este outro abismo: o que separa,
no Brasil – numas regiões mais, noutras menos – os que possuem (fortuna),
daqueles que são donos somente de privações. Também o assinala, um dos narradores
– no romance, são múltiplas as vozes – que dela se ocupa: Hakim, um dos filhos
de Emilie matriarca ao redor da qual gravita o relato. Ele rememora, muitos
anos passados, o ato de caridade de sua mãe, o dia da oferenda, quando ela distribuía quitutes e guloseimas aos
que a esperavam, sob o sol escaldante do meio-dia, diante da porta de sua casa,
numa fila que se alongava e na qual não faltavam as crianças, nem os mendigos,
nem os doentes. Tampouco, esquece das relações entre sua mãe e a lavadeira.
Lúcido, tenta ver no gesto da mãe ao dar comida para os filhos de Anastácia
Socorro, uma atitude espontânea e
generosa, mas, desta, ele duvida e tem razões para tal: as lavadeiras e empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar [...].
Como, aliás, é um procedimento
corriqueiro no norte, ele acrescenta. Sobretudo, que sua mãe resmungava: Anastácia comia como uma anta e abusava da
paciência dela nos fins de semana em que a lavadeira chegava acompanhada por um
séquito de afilhados e sobrinhos. Aos mais encorpados, com mais de seis
anos era dado um trabalho: limpar janelas e lustres e espelhos, alimentar os
animais, catar as folhas do pátio. Porém, a
humilhação os transtornava até quando
levavam a colher de latão à boca e se escondiam para comer uma comida
diferente daquela servida para a família.
Dessa
convivência que se estabelece sob o signo de privilégios e servidões, diz
Dorner, o alemão fotógrafo, para Hakim: -Aqui
reina uma forma estranha de escravidão. A humilhação e a ameaça são o açoite; a
comida e a integração ilusória à família do senhor são as correntes e golilhas.
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