A
volta do passeio que fizeram até a praia, devido a um defeito no pequeno
caminhão em que viajavam, foi interrompida. No hotel em que se hospedaram
enquanto tentavam a solucionar o impasse, Maneco Manivela, um dos três
viajantes, acredita estar sendo vigiado pela polícia. Pensa que existem razões
para tal, mas, nada comenta com Luiz ou com Leo, seu companheiros, como
tampouco expressa seus temores. As suspeitas de que pode ser preso e as
suposições a respeito de outros hóspedes do hotel o fazem viver um drama que,
sinuosamente, Dyonélio Machado relata em Desolação (reeditado pela
Planeta do Brasil em 2005). Mais do que em trocas de palavras e em gestos
esboçados, a insegurança, os temores, a desconfiança de Maneco Manivela irão se
expressar pelo olhar. Quando descansa no quarto, distraído, o seu olhar errante
pode se perder nas manchas de lua que vão
salpicando o aposento aqui e ali; quase sem ver, o seu olhar se pousa no
rapaz que está do outro lado da rua e na criança arteira que a mãe tem trabalho
para cuidar; ou percorre, com calma, o
salão do hotel, em busca da moça que o interessa. Por vezes, o seu olhar
acompanha uma ação: quando está se escondendo e quer entrar, outra vez, no seu
quarto do hotel, se aproxima da quina da casa e olha para a porta onde o
cozinheiro e o investigador falam e procuram ao redor; antes de por em prática
o plano para comprar a embreagem que faz falta no caminhão, põe um olhar investigador para dentro do salão do hotel; e quando se quer pôr a salvo do investigador,
planejando sair pelo pátio do hotel e, em dúvida, inseguro, pensa fazê-lo sem olhar para os lados, sem ligar às caras
admirativas que o pudessem estar observando....
Então, sai do pequeno quarto da gerência, muito atento. Olha primeiro a sua esquerda: é o salão que ele vê, através do arco.
Francamente iluminado, como tudo aquilo ali, está envolvido numa luz
avermelhada. Uma nesga de céu – dum céu ainda crepuscular – encaixilha-se numa
das portas da frente.
Há,
também, o olhar que nele se fixa: de simples curiosidade como o olhar indagador, parecendo procurar algo do garçom do hotel de Águas
Claras e de seu hoteleiro que o espia e lhe depõe
uma ou duas vezes o olhar, tornado redondo naquele esforço de reflexão, de
compreensão ; e, ainda, o do seu Durval, dono do Hotel Saraiva, de Viamão,
cujo olhar agudo nota a palidez de
seu rosto quando o informa da prisão do Dr. Matos.
Mas,
sobretudo, abundam os olhares que estabelecem a incerteza e o medo. O do
investigador que o observa e não mais disfarçando uma atitude neutra, lhe
arregala “um olho vivo, de interesse; que fumando, com o olhar abaixado gravemente sobre a mão do cigarro, mas olhar pronto a se elevar e “cintilar” ao menor ruído, à
menor suspeita; e no hotel, de quando em quando, ergue-lhe um olhar furtivo, o fita longamente enquanto toma a sua média e come o seu pão. Maneco
Manivela acredita que é da polícia porque, surpreendido, desvia os olhos,
despistando. Ao contrário o olhar do Dr.Matos tem uma luz serena, firme e várias vezes cruza com o seu enquanto escutavam
Bagé falar sobre o movimento revolucionário fracassado e seus planos de
governo. O interesse que demonstrou pelo que ele dizia, levou o Dr. Matos a
preveni-lo ser Bagé um agente provocador. E a mandar-lhe, de presente, “A
Cartilha da insurreição” com uma dedicatória que expressa a certeza de que lhe
será de proveitosa leitura. Ao folhear o livro e se dar conta de seu conteúdo,
Maneco Manivela o fecha, cauteloso, e olha para os lados e para Jó que o
entregara, com um olhar que quer penetrar
fundo e que só encontra a cara séria
e simples de peão de estância.
Tais
referências ao olhar, entre as muitas que pontilham as páginas de Desolação,
tanto quanto as zonas de sombra, os diálogos que se interrompem, as idas e
vindas da notação do tempo, se inserem, como um recurso de excelência, na
intenção de ambigüidade que norteou Dyonélio Machado nesse seu romance, de
1944, que se inscreve, testemunho, no período de obscurantismo de uma ditadura.
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