Emilie
chegou do Líbano ao Brasil e casou com um emigrante também vindo do Oriente. Na
sala de sua casa, a enobrecê-la,
tinha tapetes de Kashir e Isfahan e, guardados a chaves, trajes que trouxera: uma indumentária luxuriante, costurada com
brocados magníficos. Confinada num recanto escuro, abandonada e em desuso, a
vestimenta parecia aludir a um corpo vivido em outro tempo, caminhando sobre
outro solo e desafiando as estações de uma região longínqua. As jóias
trazidas de sua terra, porém, ela as usava, ainda que, somente, em ocasiões
especiais. À mesa, unia a família, um dos poucos momentos em que se hasteava a bandeira da paz, com os pratos que
preparava e que, também, eram laços com o mundo de onde viera: pães de massa
folhada, tabule, esfiha com picadinhos de carneiro, doces de semolina com nozes
e mel, compota de pétalas de rosa, pernil de carneiro assado com tâmaras,
folhados de nata e tâmara, arroz com amêndoas e o pistache, as amêndoas, as
tâmaras, o gergelim. Em algumas manhãs de sábado, ela preparava o fígado de
carneiro segundo o ritual de sua gente. Temperado com sal, pimenta do reino e
hortelã, era comido com as mãos junto com o pão e o zátar. E o simples aroma
dos figos – Só os figos da minha infância
me deixavam estonteada desse jeito
– era motivo para se lembrar das proezas dos homens das aldeias de sua terra, dos passeios entre as ruínas romanas,
dos templos religiosos construídos em séculos distintos”, das brincadeiras no lombo dos animais, dos conventos debruçados sobre abismos, da
paisagem feita de cedros negros, de córregos, de videiras, de oliveiras, de
figueiras, crescendo perto do claustro ou
da igreja.
Mas,
é a língua da infância que a faz mais próxima das suas origens. A que fala nas
conversas familiares, acompanhada de muitos gestos; a que irrompe nas festivas
reuniões de sábado entre os amigos. Aquela que ensina ao filho mais velho, por
ter nascido antes do que os outros três? Por se encontrar, ainda, muito próximo
de suas lembranças, de seu mundo
ancestral? para quem, embora
familiar, soava como a mais estrangeira
das línguas estrangeiras. Quando lhe anuncia que no sábado seguinte
estudariam juntos o alifebata, conta
“que a sua avó lhe ensinara a ler a
escrever, antes mesmo de freqüentar a
escola. Como a refazer esse caminho, percorrido na meninice, inicia o
filho, ensinando sem método, sem ordem, sem seqüência, apontando para
mercadorias da loja e para objetos pessoais, numa miscelânea da qual não estava
ausente nem a beleza (almofadas bordadas
com arabescos) nem os perfumes (pequenos
recipientes de cristal contendo cânfora e benjoim) que então nomeava. As
palavras eram repetidas muitas vezes, depois,
muitas vezes, escritas e copiadas na caligrafia
que lembrava as marcas das asas de um
pássaro que rola num espelho de areia. Uma aprendizagem dos sons, das
letras, da gramática que foi se fazendo, num esforço, cujo significado era a
aceitação do papel que lhe coubera: ser, entre os filhos, eleito o interlocutor
de sua mãe. Ao conversar com ele, não
traduzia, não tateava as palavras, não
demorava na escolha de um verbo, não resvalava na sintaxe. Feliz, soberana, desprendida de tudo, ela podia eleger os caminhos por onde passa o
afeto: o olhar, o gesto, a fala.
Como se, somente assim, por essa fala recôndita, pudesse se revelar
inteiramente, pois, ainda que senhora de afetos, não foram poucos os momentos
em que se submeteu ao silêncio.
Personagem
de Relato de um certo Oriente (Companhia das Letras, 1989, 2005), em
cuja vida se inscrevem os seus amores de mãe, de mulher, de irmã Emilie é regida, sobretudo, por esse
desenraizamento a que o abandono da terra natal pode ocasionar.
Milton
Hatoum, pela voz de seus narradores, não a revela inteiramente. Mas, a sua
presença, ainda que diluída pelas zonas de sombra que pontilham o relato, é de
inigualável força ficcional.

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