domingo, 5 de março de 2006

O aprendizado


            Emilie chegou do Líbano ao Brasil e casou com um emigrante também vindo do Oriente. Na sala de sua casa, a enobrecê-la, tinha tapetes de Kashir e Isfahan e, guardados a chaves, trajes que trouxera: uma indumentária luxuriante, costurada com brocados magníficos. Confinada num recanto escuro, abandonada e em desuso, a vestimenta parecia aludir a um corpo vivido em outro tempo, caminhando sobre outro solo e desafiando as estações de uma região longínqua. As jóias trazidas de sua terra, porém, ela as usava, ainda que, somente, em ocasiões especiais. À mesa, unia a família, um dos poucos momentos em que se hasteava a bandeira da paz, com os pratos que preparava e que, também, eram laços com o mundo de onde viera: pães de massa folhada, tabule, esfiha com picadinhos de carneiro, doces de semolina com nozes e mel, compota de pétalas de rosa, pernil de carneiro assado com tâmaras, folhados de nata e tâmara, arroz com amêndoas e o pistache, as amêndoas, as tâmaras, o gergelim. Em algumas manhãs de sábado, ela preparava o fígado de carneiro segundo o ritual de sua gente. Temperado com sal, pimenta do reino e hortelã, era comido com as mãos junto com o pão e o zátar. E o simples aroma dos figos – Só os figos da minha infância me deixavam estonteada desse jeito – era motivo para se lembrar das proezas dos homens das aldeias de sua terra, dos passeios entre as ruínas romanas, dos templos religiosos construídos em séculos distintos”, das brincadeiras no lombo dos animais, dos conventos debruçados sobre abismos, da paisagem feita de cedros negros, de córregos, de videiras, de oliveiras, de figueiras, crescendo perto do claustro ou da igreja.

            Mas, é a língua da infância que a faz mais próxima das suas origens. A que fala nas conversas familiares, acompanhada de muitos gestos; a que irrompe nas festivas reuniões de sábado entre os amigos. Aquela que ensina ao filho mais velho, por ter nascido antes do que os outros três? Por se encontrar, ainda, muito próximo de suas lembranças, de seu mundo ancestral? para quem, embora familiar, soava como a mais estrangeira das línguas estrangeiras. Quando lhe anuncia que no sábado seguinte estudariam juntos o alifebata, conta “que a sua avó lhe ensinara a ler a escrever, antes mesmo de freqüentar a escola. Como a refazer esse caminho, percorrido na meninice, inicia o filho, ensinando sem método, sem ordem, sem seqüência, apontando para mercadorias da loja e para objetos pessoais, numa miscelânea da qual não estava ausente nem a beleza (almofadas bordadas com arabescos) nem os perfumes (pequenos recipientes de cristal contendo cânfora e benjoim) que então nomeava. As palavras eram repetidas muitas vezes, depois,  muitas vezes, escritas e copiadas na caligrafia que lembrava as marcas das asas de um pássaro que rola num espelho de areia. Uma aprendizagem dos sons, das letras, da gramática que foi se fazendo, num esforço, cujo significado era a aceitação do papel que lhe coubera: ser, entre os filhos, eleito o interlocutor de sua mãe. Ao conversar com ele, não traduzia, não tateava as palavras, não demorava na escolha de um verbo, não resvalava na sintaxe. Feliz, soberana, desprendida de tudo, ela podia eleger os caminhos por onde passa o afeto: o olhar, o gesto, a fala. Como se, somente assim, por essa fala recôndita, pudesse se revelar inteiramente, pois, ainda que senhora de afetos, não foram poucos os momentos em que se submeteu ao silêncio.

            Personagem de Relato de um certo Oriente (Companhia das Letras, 1989, 2005), em cuja vida se inscrevem os seus amores de mãe, de mulher, de irmã  Emilie é regida, sobretudo, por esse desenraizamento a que o abandono da terra natal pode ocasionar.

            Milton Hatoum, pela voz de seus narradores, não a revela inteiramente. Mas, a sua presença, ainda que diluída pelas zonas de sombra que pontilham o relato, é de inigualável força ficcional.

 

             

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