domingo, 12 de março de 2006

Efêmeros laços: a cidade

            Santiago, Lima, Buenos Aires: um itinerário que os usurpadores do poder, no Continente, traçaram para muitos, na década de 70 e que o poeta registrou no seu livro Na vertigem do dia (Civilização Brasileira, 1980). Em Santiago, Ferreira Gullar chegou quando ainda era possível ter esperanças para o que, afinal, resultaria ter um triste epílogo. No primeiro poema (são dois que ele dedica ao Chile, sob o título “Dois poemas chilenos”, datados de junho e setembro de 1973), Santiago é mencionada no verso inicial, que o advérbio quando relaciona com a sua chegada na cidade, no outono e, também, mencionando que os chilenos abastados buscavam se pôr a salvo (a fugir) com seu dinheiro (dólares) e suas frustrações (dolores). É, outra vez, o advérbio quando que torna a dizer dessa chegada, agora precisando o mês: maio, tempo em que a revolução ainda se fazia. No segundo poema, o nome da cidade não está presente, sim a menção de ser aquela de Allende. É primavera (setembro, como a data que acompanha o poema revela) e os pássaros cantam. Também, longe, gorjeiam as metralhadoras que Allende, interlocutor a quem ele se dirige, já não pode escutar, como tampouco defendê-lo dos fascistas. Escrito no dia 16, anuncia a tirania que chega / para nos matar, irmanando-se, no uso da primeira pessoa do plural, com o povo chileno ou com os que professam idéias contrárias às dos vencedores.
            “Passeio em Lima” foi escrito em 1974. Registra, como soe acontecer, amiúde, nos seus poemas, esse momento vivido e único que o verbo no presente e o adjetivo demonstrativo tornam próximo. O primeiro verso delimita um espaço que somente o título do poema identifica: Debaixo desta árvore e a sensação que nesse espaço lhe advém: sinto no rosto o calor de suas flores vermelhas. Um sentir e uma impressão (como se dentro de um relâmpago) que o levam a refletir sobre a matéria da flor (pode ser de pano, pode ser de trapo) para, poeticamente, legislar que é a mesma da palavra / e da alegria no coração do homem.

            Surpreendendo-se a si mesmo no seu corpo dobrado (magro, mistura de nervos e ossos) que repousa num divã e na sua solidão (apoiado apenas em mim mesmo), a cidade de Buenos Aires é presença nos trinta e seis graus e meio de calor e no que dela pode ver pela grande janela da sala. O que importa, é, outra vez, o momento – solidão, passividade que, aliás, o título “Homem sentado” já sugere – que os últimos versos dizem ser da melancolia da perda na lembrança de plantas verdes que já morreram.

            E, desesperançado, esse outro momento vivido em Buenos Aires. No poema “Ao rés do chão”, nada diz da cidade ou de seus habitantes e, se não fosse mencionado o seu nome, nada com ela se relacionaria na enumeração dos objetos que o espelho reflete, nos espaços vazios, na ausência de ruídos. Um mundo estático e amorfo como estático e amorfo se mostra o poeta: deitado, como um objeto que respira, fora do ângulo do espelho, na solidão em que os outros objetos (que não foram nomeados) se apresentam como humanos: eles não se gostam e ficam de costas uns para os outros a indicar um reino de solidão que é o reino próprio dos homens.

            Ainda a mencionar um crepúsculo de Buenos Aires, o primeiro poema do livro, “Minha medida”. Seu tema é o Brasil, a sua gente, a sua fome e a referência a Buenos Aires, embora anódina, é a breve presença que não deixa esquecer essa vivência de exilado, esse lugar onde escreveu, também, “A alegria”, “A voz do poeta”, “Primeiros anos”, “Digo sim” que trazem a data de 1975. Pedaços de vida, construídos por emoções que laços de afeto enovelam, ignorando fronteiras o que é assaz raro entre os habitantes do Continente. Porque o destino de seus países, inegavelmente, semelhante ou idêntico, deveria levá-los a se conhecer. No entanto, preconceitos, idéias falsas, ignorância os separam fazendo com que não existam uns para os outros.

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