Santiago,
Lima, Buenos Aires: um itinerário que os usurpadores do poder, no Continente,
traçaram para muitos, na década de 70 e que o poeta registrou no seu livro Na
vertigem do dia (Civilização Brasileira, 1980). Em Santiago, Ferreira
Gullar chegou quando ainda era possível ter esperanças para o que, afinal,
resultaria ter um triste epílogo. No primeiro poema (são dois que ele dedica ao
Chile, sob o título “Dois poemas chilenos”, datados de junho e setembro de
1973), Santiago é mencionada no verso inicial, que o advérbio quando relaciona com a sua chegada na
cidade, no outono e, também, mencionando que os chilenos abastados buscavam se
pôr a salvo (a fugir) com seu dinheiro (dólares) e suas frustrações (dolores).
É, outra vez, o advérbio quando que
torna a dizer dessa chegada, agora precisando o mês: maio, tempo em que a
revolução ainda se fazia. No segundo poema, o nome da cidade não está presente,
sim a menção de ser aquela de Allende. É primavera (setembro, como a data que
acompanha o poema revela) e os pássaros cantam. Também, longe, gorjeiam as metralhadoras que Allende,
interlocutor a quem ele se dirige, já não pode escutar, como tampouco defendê-lo
dos fascistas. Escrito no dia 16, anuncia a tirania
que chega / para nos matar, irmanando-se, no uso da primeira pessoa do
plural, com o povo chileno ou com os que professam idéias contrárias às dos
vencedores.
“Passeio
em Lima” foi escrito em 1974. Registra, como soe acontecer, amiúde, nos seus
poemas, esse momento vivido e único que o verbo no presente e o adjetivo
demonstrativo tornam próximo. O primeiro verso delimita um espaço que somente o
título do poema identifica: Debaixo desta
árvore e a sensação que nesse espaço lhe advém: sinto no rosto o calor de suas flores vermelhas. Um sentir e uma
impressão (como se dentro de um relâmpago)
que o levam a refletir sobre a matéria da flor (pode ser de pano, pode ser de
trapo) para, poeticamente, legislar que é a mesma da palavra / e da alegria no
coração do homem.
Surpreendendo-se
a si mesmo no seu corpo dobrado (magro,
mistura de nervos e ossos) que
repousa num divã e na sua solidão (apoiado
apenas em mim mesmo), a cidade de Buenos Aires é presença nos trinta e seis
graus e meio de calor e no que dela pode ver pela grande janela da sala. O que
importa, é, outra vez, o momento – solidão, passividade que, aliás, o título
“Homem sentado” já sugere – que os últimos versos dizem ser da melancolia da
perda na lembrança de plantas verdes que
já morreram.
E,
desesperançado, esse outro momento vivido em Buenos Aires. No poema “Ao rés do
chão”, nada diz da cidade ou de seus habitantes e, se não fosse mencionado o
seu nome, nada com ela se relacionaria na enumeração dos objetos que o espelho
reflete, nos espaços vazios, na ausência de ruídos. Um mundo estático e amorfo
como estático e amorfo se mostra o poeta: deitado, como um objeto que respira, fora do ângulo do espelho, na solidão
em que os outros objetos (que não foram nomeados) se apresentam como humanos:
eles não se gostam e ficam de costas uns para os outros a indicar um reino de
solidão que é o reino próprio dos homens.
Ainda
a mencionar um crepúsculo de Buenos Aires, o primeiro poema do livro, “Minha
medida”. Seu tema é o Brasil, a sua gente, a sua fome e a referência a Buenos
Aires, embora anódina, é a breve presença que não deixa esquecer essa vivência
de exilado, esse lugar onde escreveu, também, “A alegria”, “A voz do poeta”,
“Primeiros anos”, “Digo sim” que trazem a data de 1975. Pedaços de vida,
construídos por emoções que laços de afeto enovelam, ignorando fronteiras o que
é assaz raro entre os habitantes do Continente. Porque o destino de seus
países, inegavelmente, semelhante ou idêntico, deveria levá-los a se conhecer.
No entanto, preconceitos, idéias falsas, ignorância os separam fazendo com que
não existam uns para os outros.
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