domingo, 1 de maio de 2005

Desavenças


                     O  caso foi parar na Delegacia de Polícia e, depois, no Fórum de São Sepé. Designado para defender o réu, acusado de bater na mulher, Afif Jorge Simões Filho, faz a defesa em sete estrofes de cinco versos heptassílabos. Versos que teriam se perdido se não fosse o interesse de seu filho em recuperá-los. Diz Afif Jorge Simões Neto (Em nome do pai, Porto Alegre, Ed. do Autor, 2004) que isso foi possível graças à memória do desembargador aposentado José Ernesto Flesch Chaves, juiz de Direito, em São Sepé à época do processo e a inclui no livro que reproduz textos em prosa e em verso de seu pai, e aqueles que lhe traçam o perfil ou rememoram episódios de sua vida.



            Nos sonetos de Afif Jorge Simões Filho, publicados em Menino submerso (Porto Alegre, Martins Livreiro, 1983), entre os quais se encontram “Soneto ante a Tapera de meus pais”, “Noturno  1,” “Identidade” e “Marinha”, que lhe valeram o prêmio Apesul Revelação Literária, em 1978, a nota dominante é a melancolia. Assim, esta defesa, como as outras duas que fez em verso, surpreende ao revelar, inesperadamente, um poeta assaz alegre e trocista. 

            Na primeira estrofe, o nome de Helena e Assis, casal perfeito e feliz; também, a observação da experiência de vida, pois que ela nem sempre está afinada. Na segunda estrofe, o momento que antecede a briga: Helena dormia quando o marido começa a tocar a acordeona sem parar. Nas estrofes que seguem, o relato de que nem a parte mais animada e bonita da música comove Helena: tira de suas mãos o instrumento e lhe arranha o rosto. Ele reage e bate na mulher que, então,   leva marido e instrumento para o distrito policial. Depois, a brabeza passa e ela retira a queixa, argumentando: Que uma gaita mal tocada / Não pode pôr fim à estrada / De um casamento feliz. O poeta-advogado se permite, na penúltima estrofe, aconselhar o juiz, lembrando a velha sabedoria popular que prega a não intromissão em briga de marido e mulher. E acrescenta, ainda, na última estrofe, que, se os amantes se perdoaram, a situação fica resolvida e, por isso, apenas pede que o processo se encerre com a esmola do perdão.

Com as rimas no segundo e quinto e no terceiro e quarto versos, fugindo, portanto, ao sistema de duas rimas, consagrado para a quintilha e com a acentuação na sétima sílaba, o poema se estrutura, submisso, a uma narrativa linearmente circular: tem começo na apresentação de um casal que se ama, prossegue relatando a desavença entre eles instaurada e, logo, a reconciliação. Como um adendo, as duas estrofes finais que se dirigem ao juiz, pregando prudência e a absolvição. Perfeitos veículos de comicidade, os adjetivos briguenta e mandona e antimusical, rotulando Helena e chato e birrento, designando Assis que longe estão de falar de heróis. E os verbos, na combinação com um sujeito inesperado (a vida que desafina tanto quanto Assis) ou com um objeto composto por duas palavras que discrepam entre si quanto à ação do verbo (carrega gaita e marido / Ao distrito policial). E, principalmente, a expressão posta em sossego para dizer de Helena, remetendo ao verso camoniano, contido no episódio mais lírico e trágico de Os Lusíadas, que, seguido de uma prosaica informação (Deitada estava a sestear), estabelece distância entre a personagem da epopéia e o simplório desencontro familiar. Desencontro, na sua peculiar singeleza, entendido por Afif Jorge Simões Filho, que fez dele, não apenas um motivo para a sua defesa sui generis, mas, também, um precioso exercício poético em que os heptassílabos, a lembrar as quadras populares e um ingênuo lirismo, se combinam para a espontaneidade de versos cuja graça e beleza   vicejam no  simples e no verdadeiro.
 

Assis e Helena se amavam,
Casal perfeito e feliz,
Mas a vida nos ensina
Que ela também desafina 

Como a cordeona do Assis.
Helena posta em sossego
Deitada estava a sestear,
Quando Assis chato e birrento
Tira da caixa o instrumento,

Não parava de tocar
Quando entrou num limpa-banco,
Bonito de pedir bis,
Helena briguenta e mandona,
Arranca dela a cordeona
E arranha a cara do Assis

Ele reage e agride
A esposa antimusical,
Que ante o fato acontecido
Carrega gaita e marido
Ao distrito policial. 

Mas depois retira a queixa,
É ela mesma quem diz,
Que uma gaita mal tocada
Não pode por fim à estada
De um casamento feliz. 

Senhor Juiz, siga o conselho
De meu saudoso ancestral
Ponha a queixa na gaveta,
Fique quieto e não se meta
Nesta briga de casal. 

Se os amantes se perdoaram
Resolvendo a situação,
Justo é o pouco que lhe peço
Que encerre este processo
Com a esmola do perdão.

 

 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário