A realidade do mundo, de um ser humano, é essencialmente fragmentária,
como se estivesse refletida num espelho roto. Augusto Roa Bastos.
É
uma obra estranha com vertentes narrativas que Augusto Roa Bastos, no domínio
de seu ofício, sabiamente, entrelaça.
Nas suas primeiras páginas, Félix Moral, o personagem-narrador de El Fiscal
(Buenos Aires, Sudamericana, 1993) que vive exilado na França, toma conhecimento de que um Congresso será realizado na sua
pátria, ainda nas mãos do ditador que lhe determinara o destino. Embora
proscrito, a informação, contida no
convite, de que o tirano estaria presente à cerimônia de inauguração do
Congresso e cumprimentaria, pessoalmente, os convidados, o leva à decisão
irrevogável de ir com o determinado objetivo de matá-lo.
À
narrativa do que acontece nos dias que antecedem a sua partida para o Paraguai,
sua conturbada viagem e o que ocorre ao chegar se acrescem a história de
Jimena, sua companheira e o seu viver
com ela e a de seu amigo Clóvis de Larzac; episódios de sua ambígua relação com a aluna de quem orienta o
trabalho; algo de sua infância e das sevícias sofridas nos cárceres de seu
país. E a malfadada experiência como roteirista de um filme sobre Solano López
e Elisa Alicia Lynch, razão de ter sido preso e torturado.
Como
soe acontecer no que se refere à História, seja de um episódio tido por menor,
seja de um outro, considerado de suma importância, é deveras limitado o
conhecimento que sobre eles é possível ter. Passado mais de um século, a
história da Guerra do Paraguai, matéria de controvérsias e discussões, de
querelas e duelos verbais intermináveis,
continua sendo totalmente desconhecida, diz Félix Moral antes de se referir às Cartas
desde los campos de batalla del Paraguay, escritas por Sir Richard Francis
Burton e publicadas no final de 1870, logo após o término da Guerra. Em suas
páginas, ou em outras tantas que trataram dessa Guerra, ele encontra os
fragmentos que irão compor o seu roteiro fixado nos momentos finais da vida de Solano
Lopez que são, também, os momentos de extermínio de seu povo: a corrida pelos
campos na direção do rio onde foi atirado, das barrancas, pelo cavalo que,
repentinamente se detém; o gesto, ainda querendo fazer frente a seus
perseguidores, de levantar o braço trêmulo de moribundo. E na miséria atroz, os
que sobreviveram. Porém, nesse refazer da História, experimenta revelações, se
lhe desvendam mistérios, mergulha em emoções – furor, raiva, alma que se escapa
– diante do que restou do cadáver mutilado pela fúria dos vencedores, cravado na cruz de galhos mal cortados pelas hostes brasileiras e que nunca
seria iluminado pelo sol da justiça: corpo
crucificado para o qual não havia nenhuma ressurreição possível em toda a
eternidade.
Das atrocidades cometidas, que, de muito,
ultrapassaram aquelas admitidas pelo código da assim chamada ética da guerra,
das quais, juntamente com a Argentina e o Uruguai, foi o Brasil responsável,
fica o rastro de horror, marcado de crianças mortas, de mulheres seviciadas, de
milhares de mortos, de um país destruído.
Félix Moral, ao reler o que escrevera, procura
entender: não é um réquiem funerário, nem um exaltado canto à glória. Apenas, um roteiro de filme, o negativo
de uma história impossível de narrar porque aquele acontecimento fantasmagórico superava todos os limites da imaginação e
as possibilidades de expressão da palavra e da imagem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário