domingo, 24 de abril de 2005

As cores, os perfumes, os inomináveis.



Neste mês de março, foi publicado pela Cosmigonon de Concepción, em edição bilíngüe, francês/espanhol, Escenarios chilenos: um pequeno livro de breves textos que seu autor, o francês Yves Boisseleau, chama de poemas. Na verdade, exceção feita de “A las siete de la tarde”, construído em versos e estrofes, os demais se apresentam como textos em prosa da qual, quiçá, se afastem pelo emprego de palavras que embora fixem o verossímil e o real, parecem buscar, sobretudo, um traço de beleza,  uma fixação do efêmero.

            De um itinerário que os mapas, em apêndice, assinalam, Yves Boisseleau detém o olhar no  inesperado e surpreendente das formações vulcânicas, da lagoa de águas salobras onde se aninham os flamengos, da infinda cadeia dos Andes com seus cimos agudos, dos vulcões que  fingem dormir e talvez despertem, do deserto de sal, dos vastos mares mortos da altura. E, assinala suas nuanças de cor, esboçando um mundo matizado de odores raros e de sons peregrinos.

            Se as cores o impressionam em algo do urbano – cabanas de cores vivas, casas de tantas cores, o amarelo do muro – é, principalmente, no colorido das flores e da paisagem que se deixará surpreender: hortênsias azuis como as que se vêem na porcelana da Saxônia, a pintura episcopal das fúcsias, as algas negras. Em Atacama, ao descrever os pântanos andinos, enumera-lhes as cores: tons esmaecidos do pastel, o cinzento da pomba, o verde do jade, o ocre do adobe, o vermelho da uva moscatel, as sutis auréolas do branco, o bege da rola, o rosado leitoso da peônia, os negros mais profundos de Goya e de Velázquez. E repentinos, emergem os perfumes e os ruídos: o cheiro de enxofre de um vulcão, a fragrante respiração das árvores, o cheiro das rosas e dos limões, o leve barulho marcando a passagem de um lagarto, os múltiplos silvos das águas ferventes de Chillán.

            Em meio a essas descobertas de um europeu que, por vezes, ainda pauta sua emoção com

lembranças de Goya, Rimbaud, Chateaubriand, também aquela diante da silhueta distante de Quiriquina, dos estádios de futebol, do palácio de La Moneda. A bela expressão que descreve, admirativa, o que se oferece ao olhar, se torna cortante e inflexível quando se refere aos cenários do que, eufemisticamente, a nota introdutória do livro chama de história recente do Chile. Yves Boisseleau se refere à Quiriquina antecedendo-lhe ao nome o adjetivo : immonde (imunda) que a discrição dos tradutores transformou em mancillada (manchada). A ilha situada diante da cidade de Concepción, durante o Golpe de Estado de 1973, foi campo de concentração de prisioneiros políticos. Como também o foram os estádios chilenos dos quais diz que, embora as multidões neles possam se alegrar com a vitória de seus times,  jamais recobrarão a paz. Sobre o palácio, onde Salvador Allende foi assassinado e que o título do texto identifica, retoma o acontecido. Primeiro, na síntese de uma inequívoca e solitária frase: É aqui onde o crime foi cometido. Depois, talvez, ainda, acreditando no ser humano  que, no entanto, já não surpreende na sua imensa galeria de tíbios, indiferentes,  aproveitadores,  entreguistas  que não desejaram saber, não quiseram compreender, a esperança utópica e humanista quando afirma, em palavras peremptórias, a permanência do que não  deve ser esquecido: Nada apagará a lembrança da ação criminosa. Nem o palácio restaurado após o bombardeio. Nem o sangue lavado sobre os ladrilhos. Nem as portas emparedadas, porque não se amuralha a memória.

Nenhum comentário:

Postar um comentário