Neste mês de
março, foi publicado pela Cosmigonon de Concepción, em edição bilíngüe,
francês/espanhol, Escenarios chilenos:
um pequeno livro de breves textos que seu autor, o francês Yves Boisseleau,
chama de poemas. Na verdade, exceção feita de “A las siete de la tarde”,
construído em versos e estrofes, os demais se apresentam como textos em prosa
da qual, quiçá, se afastem pelo emprego de palavras que embora fixem o
verossímil e o real, parecem buscar, sobretudo, um traço de beleza, uma fixação do efêmero.
De
um itinerário que os mapas, em apêndice, assinalam, Yves Boisseleau detém o
olhar no inesperado e surpreendente das
formações vulcânicas, da lagoa de águas salobras onde se aninham os flamengos,
da infinda cadeia dos Andes com seus cimos agudos, dos vulcões que fingem
dormir e talvez despertem, do
deserto de sal, dos vastos mares mortos
da altura. E, assinala suas nuanças de cor, esboçando um mundo matizado de
odores raros e de sons peregrinos.
Se
as cores o impressionam em algo do urbano – cabanas de cores vivas, casas de
tantas cores, o amarelo do muro – é, principalmente, no colorido das flores e
da paisagem que se deixará surpreender: hortênsias azuis como as que se vêem na
porcelana da Saxônia, a pintura episcopal
das fúcsias, as algas negras. Em
Atacama, ao descrever os pântanos andinos, enumera-lhes as cores: tons
esmaecidos do pastel, o cinzento da pomba, o verde do jade, o ocre do adobe, o
vermelho da uva moscatel, as sutis auréolas do branco, o bege da rola, o rosado
leitoso da peônia, os negros mais profundos de Goya e de Velázquez. E
repentinos, emergem os perfumes e os ruídos: o cheiro de enxofre de um vulcão, a fragrante respiração das árvores, o
cheiro das rosas e dos limões, o leve barulho marcando a passagem de um lagarto, os múltiplos silvos das águas
ferventes de Chillán.
Em
meio a essas descobertas de um europeu que, por vezes, ainda pauta sua emoção
com
lembranças de Goya, Rimbaud,
Chateaubriand, também aquela diante da silhueta distante de Quiriquina, dos
estádios de futebol, do palácio de La Moneda. A bela expressão que descreve,
admirativa, o que se oferece ao olhar, se torna cortante e inflexível quando se
refere aos cenários do que, eufemisticamente, a nota introdutória do livro
chama de história recente do Chile. Yves Boisseleau se refere à Quiriquina
antecedendo-lhe ao nome o adjetivo : immonde
(imunda) que a discrição dos tradutores transformou em mancillada (manchada). A ilha situada diante da cidade de
Concepción, durante o Golpe de Estado de 1973, foi campo de concentração de
prisioneiros políticos. Como também o foram os estádios chilenos dos quais diz
que, embora as multidões neles possam se alegrar com a vitória de seus
times, jamais recobrarão a paz. Sobre o palácio, onde Salvador Allende foi
assassinado e que o título do texto identifica, retoma o acontecido. Primeiro,
na síntese de uma inequívoca e solitária frase: É aqui onde o crime foi cometido. Depois, talvez, ainda,
acreditando no ser humano que, no
entanto, já não surpreende na sua imensa galeria de tíbios, indiferentes, aproveitadores, entreguistas
que não desejaram saber, não quiseram compreender, a esperança utópica e
humanista quando afirma, em palavras peremptórias, a permanência do que
não deve ser esquecido: Nada apagará a lembrança da ação criminosa.
Nem o palácio restaurado após o bombardeio. Nem o sangue lavado sobre os
ladrilhos. Nem as portas emparedadas, porque não se amuralha a memória.
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