domingo, 17 de abril de 2005

O conselho

            Foram três as defesas feitas em verso por Afif Jorge Simões Filho, advogado de São Sepé, no Rio Grande do Sul. Duas delas, publicadas Em nome do pai, de Afif Jorge Simões Neto (Porto Alegre, Ed.do Autor, 2004) e a de 1966, pelo “ Caderno de Sábado”, do Correio do Povo de Porto Alegre, ao noticiar que o poeta havia ganho o Prêmio Apesul-Revelação Literária 1978; em 1983, parte de seu livro de poemas, Menino Submerso (Porto Alegre, Martins Livreiro) e na Gazeta de Caçapava de 7 de junho de 2002.

            Relatando episódios da vida de seu pai, Afif Jorge Simões Neto lhe desenha um perfil do qual não estão ausentes nem o tocador de bandoneon, nem o inspirado poeta que, tão bem, se deixa aprisionar pelas severas leis do soneto tanto quanto pela espontaneidade do heptassílabo, verso cantante das canções populares.

            Em 1959, o poeta dos exímios sonetos – comparados pela crítica literária riograndense aos de Alceu Wamosy e aos de Mário Quintana – fez a defesa, em versos, de um agricultor, acusado de bater na mulher: estava trabalhando numa empreitada, distante de casa, e, ao voltar,  encontrou, na venda, uma conta, fruto de compras desnecessárias de sua mulher que ele não tinha condições de pagar. Então, embrabeceu e surrou a mulher, incorrendo no artigo 129 do Código Penal.

            No poema, Afif Jorge Simões Filho relata o que aconteceu, o arrependimento da esposa em ter dado queixa; e dá a sua opinião, certamente, também, um argumento da defesa, ao justificar o ato cometido e termina oferecendo sábios conselhos no sentido de evitar novas complicações com a justiça.

            São treze quartetos de sete sílabas, versos impecáveis, acentuados sempre – embora o heptassílado permita acentuação incerta – na sétima sílaba e com rimas alternadas (segundo e quarto verso), muitas vezes, ricas. Feitos, sobretudo, de risonha bonomia, já presente na primeira estrofe, ao afirmar que se trata de mais um caso em que o marido espanca a mulher, o que, sem dúvida, posto que se trata de um ato corriqueiro, ameniza a culpa daquele a quem está a defender. Na segunda, terceira, quarta e metade da quinta estrofe, esclarece o motivo do espancamento. Logo, diz que o réu exemplou a mulher para concluir que fez muito bem. E a nova generalização, formulada na hipótese – quem, um dia, não desejou fazer o mesmo com a mulher gastadeira – se mostra um outro argumento de defesa a reafirmar a oportunidade do ato, tido por corretivo. Como lembrar que foi grave a falta – comprar brincos e tetéias, / Riscado, lenço e chapéu – diante do trabalho ingrato de cortar arroz, / Metido no lodaçal, para ganhar o salário tão levianamente comprometido em aquisições supérfluas: brincos de orelha, / e coisas sem precisão.

            Na estrofe dez, conta que a mulher se arrependeu de ter dado queixa e na seguinte, afirma, convicto, que o réu é inocente, mas que não deve dirimir da prudência, aproveitando a lição: da próxima vez que precisar fazê-lo, deve surrar a mulher de leve, sem deixar sinal. Ou, tão forte para que ela não possa ir dar parte dele na cidade.

            Ainda que circunstancial, ainda que escrito às pressas para atender ao chamado do juíz que o nomeou defensor do réu sem condições para contratar um advogado, como o testemunha seu filho, em O nome do Pai, esta defesa é um poema que extrapola o inusitado. Pela vivacidade do relato, pelo hábil manejo da rima e do ritmo, pelo trocista lirismo, pelo enraizar-se no universo campeiro, esse poema se constitui um momento especial em meio de um poetar pleno de encanto e de perfeições.

Mais uma cena de briga,
Entre um casal de campanha
Mais um marido que espanca
Mais uma esposa que apanha. 

O réu espancou a esposa,
Porque esta, na sua ausência,
Fez uma conta comprida
No bodegão da querência. 

Ao regressar da empreitada,
Todo saudoso e folheiro,
Caiu de costas ao ver
As notas do bodegueiro. 

Eram brincos e tetéias,
Riscado, lenço e chapéu,
Para os parentes da esposa
Tudo por conta do réu. 

Como da plata que trouxe
Não lhe sobrasse um vintém,
Egídio exemplou a esposa,
E, agindo assim, agiu bem. 

Quem de nós não quis um dia,
Com a esposa gastadeira,
Fazer o mesmo que fez,
O réu Egídio Siqueira. 

E’ bruto cortar arroz,
Metido no lodaçal,
E deixar todo o salário
No bolicho do Sinval. 

Tá certo que se gastasse
Com erva, farinha e pão,
Mas não com brinco de orelha
E coisas sem precisão. 

Mas a esposa arrependeu-se,
Conforme disse ao depor,
De haver trazido à justiça
O marido espancador. 

Se ela se diz conformada,
E arrependida da queixa,
Não vamos dizer: prossegue
Quando ela mesma diz: deixa. 

Pobre réu. Estou convicto
De sua santa inocência.
Mas que aproveite e aprenda
Esta lição de experiência. 

Se outra vez surrar a esposa
(Este é o pedido que eu faço),
Que surre de manso e de leve,
Sem deixar sinal do laço. 

Ou então que surre forte,
Com toda a força e vontade,
De modo que ela nem possa
Vir dar parte na cidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário