domingo, 10 de abril de 2005

A pérola do Guaíba: nódoas


E a aristocracia da pele passará como todas as outras aristocracias! Tempo ao tempo!

Arsène sabelle
 

            Herbert Smith nasceu nos Estados Unidos e, entre 1881 e 1882, permaneceu seis meses no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, se hospedou num hotel que o impressionou vivamente pela qualidade de seus serviços e pelas criadas, limpas e frescas que nem lírios, lírios negros.

            Dentre os testemunhos de viajantes que foram recolhidos por Valter Antonio Noal Filho e Sérgio da Costa Franco em Os viajantes olham Porto Alegre 1754-1890, publicado pela Anaterra, de Santa Maria, é uma fugaz expressão simpática sobre os negros de Porto Alegre que se perde entre as dos demais viajantes que apenas lhes constatam a presença em breves e apressadas observações.



            Em 1820-1821, o viajante diz que havia em Porto Alegre, pouquíssimos mulatos. Em 1861, um suíço falaria no sangue português, profundamente pervertido, devido ao cruzamento  com negros; num texto de 1878, irá constar que em Porto Alegre havia negros e mulatos por toda a parte, quase todos escravos;  e que, dois anos depois, devido às inúmeras miscigenações, ocorreram, como em todo o país, incontáveis variedades de mulatos. Alguns viajantes, porém, só irão se ater aos negros ou notando que na cidade havia, relativamente ao número de habitantes, menos negros do que no Rio de Janeiro. Ou em observações um pouco mais precisas como a do hóspede de uma residência familiar que percebe crianças negrinhas entrando e saindo da casa;  como a do viajante que assiste, no sábado de Aleluia, à queima do Judas e presencia o júbilo gritante da população negra, enchendo as ruas. Como as várias que dão conta dos trabalhos realizados em público: o de carregador – os negros, considerados verdadeiras bestas de carga – e o de comerciante, no mercado, acocorado perto das mercadorias.

            Dois viajantes, no entanto, perceberam mais.

            Em 20 de março de 1834, Arsène Isabelle chega a Porto Alegre e, sobre ela, escreve um longo texto em que, a par de elogiar a sua situação como cidade e seus arredores, seu clima, a arquitetura de suas casas, não poupa críticas a alguns costumes que ali  reinavam. Ao tratar da presença dos negros – homens laboriosos, os trabalhadores, aqueles enfim que têm mais necessidade de empregar sua inteligência–, tampouco deixou de se indignar sobre a sua situação: não passam de escravos, e, sobretudo, de negros! Relata como, por qualquer falta, são amarrados ao primeiro poste e flagelados até que o sangue brote, recebendo, então, nas feridas, sal e pimenta. Acrescenta que há senhores tão bárbaros, principalmente na campanha que mandam fazer incisões nas faces, nas nádegas, nas coxas de seus escravos para meter pimenta dentro delas; e aqueles que   assassinam um negro jamais pagam por isso. Porquanto existam leis severas para tal crime, elas não são aplicadas e Arsène Isabelle cita Balzac: as leis nunca estorvam os empreendimentos dos grandes ou dos ricos, mas ferem os pequenos, que têm, ao contrário, necessidade de proteção. Testemunha, ainda que, todos os dias, de manhã, defronte de uma igreja e junto de uma coluna levantada sobre um pedestal de pedra, há sempre um conjunto de membros mutilados, dificilmente reconhecíveis como um ser humano: um negro que sob as duzentas, quinhentas, mil ou seis mil chicotadas foi transformado em massa informe.

            Completando tais quadros de horrores, que, evidentemente, se perpetuam também post-mortem, as palavras de Marie Van Langendonck que esteve, pela primeira vez, no Rio Grande do Sul entre 1857 e 1860, a propósito do dia 2 de novembro, quando todas as famílias visitam o cemitério da cidade, admiravelmente situado sobre uma elevação e muito bem cuidado. Fora de seus muros, há uma espécie de monturo onde os negros são enterrados. Eles aí são depositados, sem caixão, na terra, simplesmente enrolados num pedaço de pano, e às vezes mesmo sem esse pobre acessório. Vêem-se, cá e lá, trapos que a terra não cobre inteiramente, são os lençóis dos cadáveres cuja fossa não foi cavada suficientemente profunda.

            No segundo volume, Os viajantes olham Porto Alegre 1890-1941, as referências aos negros, além da que trata de seus costumes funerários e da que descreve o penteado de beldades negras, são igualmente esparsas, mas, sobretudo, sem contemplações. Negando-lhes a presença ou mencionando-os com indiferença e desprezo, por quaisquer que sejam suas razões, os viajantes não puderam ou não quiseram entender a nódoa que, assim, injustiçados por leis abjetas e por preconceitos ignóbeis, os negros significavam para a sociedade na qual estavam inseridos.

 

 

 

 

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