domingo, 30 de janeiro de 2005

Dos contrabandistas

            As lembranças do filho e dos amigos se enleiam às emoções de Jorge Afif Simões Filho, contando, em breves textos e em poemas, episódios de sua vida. Em nome do pai de Jorge Afif Simões Neto (Edição do Autor, Porto Alegre, 2004) elabora retratos e recria cenários em relatos que, por vezes, também fazem a história de uma época.

            Nascido em 1927, em São Sepé, quando tinha pouco mais de seis anos a família se mudou para o campo, pois seu pai decidiu mudar o comércio pela pecuária e pela lavoura. Jorge Afif Simões Filho diz que dessa época, vivida na campanha, guarda impressões nítidas e fortes. Aprendeu a andar a cavalo e, então, em companhia do pai, percorria o campo; entre outras brincadeiras, a pesca no arroio; perto da venda, em cujo potreiro descansavam os bois dos carreteiros, ficava a lhes ouvir as histórias e as trovas e tocatas. E os causos e cantorias à noite, no galpão, quando chegavam os contrabandistas.
 

            No poema “Meu tipo inesquecível”, fala desse moço que chegava do Uruguai, com nome  trocado, marcado de balaços, a respiração de cavaleiro perseguido e um contrabando de bugigangas. Em “Malas de andantes”, cada seis versos das quatro estrofes que o compõem, é um pequeno capítulo a relatar os momentos de sua emoção de menino diante dos homens que chegavam curtidos de chuva e sol e cujas histórias o deslumbravam. Na primeira estrofe, a chegada, o que já era uma festa, e o que traziam nas malas de contrabando: lenço, colcha e lençol, / espelho, pente e perfume, /Bala e baralho espanhol. Na segunda e terceira, esse momento mágico, no galpão, perto do fogo, a escutar os causos, sempre curtos, Por mais que fossem compridos do que acontecia nessas vidas de constantes perigos: as peripécias da vida aventureira, passada a brigar, a fugir, a enfrentar os tiroteios na fronteira e a correnteza dos passos brabos. A emoção dessas lembranças, não apagadas pelo tempo, se expressa, sobretudo, no último verso da quarta e última estrofe: E mesmo velho conservo / Meu espanto de guri. Não está distante daquela, presente nos textos em prosa. Como os poemas e a eles se intercalando, pertencem, também, ao capítulo II, “Na Rondinha”. Num deles, menciona a procedência dos contrabandistas, uruguaios da fronteira que traziam mercadorias de Rivera. Para o menino Jorge Afif Simões Filho, o mais fascinante  era “El Gaúcho”, de 35 a 40 anos, com sua melena ondulada e negra, seu dente de ouro e seu espanhol mesclado de português. Tinha um pequeno bandônio que sacava de uma capa de lona e espichava em tangos e milongas. Certamente, estão na origem do encanto que o poeta guardou  por esses ritmos e pelo instrumento que, mais tarde, aprendeu a tocar. Como relata seu filho, Jorge Afif Simões Neto, o bandônio foi uma das grandes paixões de seu pai e dos companheiros fraternos que teve talvez o mais inseparável. E tanto, que no seu escritório de advocacia, o guardava debaixo da escrivaninha e, muitas vezes, quando chegava um cliente, antes de tratar do assunto que motivara a visita, ele tocava um tango ou uma milonga, tranqüilizando com a sua música quem chegara para tratar de um caso geralmente aflitivo.  E desses contrabandistas, amigos de seu pai, recebidos na sua casa onde chegavam abrindo as malas de mercadorias para delas tirar presentes, lhe ficou, também a ternura  por  certa gente fora da lei, como diz no outro texto em prosa. Torna a fazer menção ao inesquecível convívio no galpão, aos tiroteios, tão comuns e arriscados para os que se dedicavam a se esquivar da guarda aduaneira e que acabaram por ser fatal a El Gaucho, mais tarde, morto numa contenda com os fiscais do governo. E esse inestimável testemunho: homens que desencilham os cavalos, oferecem algo do que trazem, um lenço de pescoço, um pedaço de tecido, um pequeno espelho e muito de suas histórias de coragem e enfrentamento de perigos: muito diferente, diz o poeta, do comércio ilícito desses magnatas motorizados que enriqueceram de noite para o dia. E sem o mínimo risco seria dever acrescentar.

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