domingo, 23 de janeiro de 2005

A palavra dada


            Em nome do pai (Porto Alegre, Edição do Autor, 2004) se constrói em duas partes, inclusive graficamente distintas, que se intercalam: os textos de Afif Jorge Simões Neto e os de seu pai que, em prosa e em verso, vão dando conta de sua vida e de suas emoções. E a elas se acrescentam as do filho quando completa esse relato, delineando cenários, tirando do esquecimento testemunhos de amigos e trazendo à luz documentos significativos que não somente reafirmam algum traço do perfil de Afif Jorge Simões Filho como permitem que algo da sua época e de seus coetâneos seja mais conhecido. Assim, a prisão sofrida durante o período ditatorial brasileiro, assim as suas instâncias para ajudar um amigo, igualmente a mercê dos corriqueiros sucessos inquisitoriais de então.

            Se o encarceramento do poeta se deu em forma cortês, pois lhe foi permitido, após ter recebido ordem de prisão, passar a noite em casa, as razões invocadas para privá-lo da liberdade reforçam a idéia de que muito do que aconteceu então foi marcado não apenas pela injustiça, mas, sobretudo, pelo mais acabado ridículo. Afif Jorge Simões Filho foi simplesmente acusado de atividades guerrilheiras – ele que jamais usara um canivete no bolso – e, então, “exemplado”.  Porque levara para a sua pequena propriedade rural, a doze quilômetros de São Sepé, cidade em que vivia, um velho mosquetão que pertencera a seu sogro, morto alguns anos antes. Embriagado, o caseiro se divertiu atirando nas avestruzes que passavam na frente da casa. Alguém ouviu os tiros e delatou o proprietário do campo como um treinador de guerrilha. Foi o suficiente para ser preso. Igualmente acusado de realizar uma reunião subversiva, um agricultor  da região que, festejando os quinze anos da filha, havia reunido um grande número de convidados. Fora preso sem saber porque e, também, submetido a um interrogatório de inócuas perguntas. Ainda assim, encarou o episódio com esportividade e até com espírito galhofeiro, como realmente convinha que fosse encarado. Não o poeta, um bacharel em direito, conhecedor das leis e dos direitos dos cidadãos, privado de sua liberdade porque houve delatores desinformados e aqueles que por leviandade ou má-fé lhes deram crédito e que, diante do erro cometido, ainda se encheram de razões para, encerrar um diálogo, certamente desconfortável, ao apontar incongruências de atitudes: não estamos aqui para discutir. Como diz o filho, Afif Jorge Simões Neto, depois de sua prisão política, ele passou a ser um outro homem: ferido, não pela violência física mas por ter sido submetido a uma situação em que reinava uma completa atmosfera de irracionalidade, o que é letal para um poeta de aguda sensibilidade. 

            Quando, seu amigo de infância e conterrâneo, Índio Brum Vargas, militante do grupo armado do PTB, de Porto Alegre, foi preso e interrogado sob tortura, Afif Jorge Simões Filho escreve a uma autoridade eclesiástica, pedindo que interceda junto ao Governo de Estado para que cessem as torturas e para que seja concedida a liberdade ao seu amigo. Como respostas, duas cartas – ao receber a primeira, o poeta tornou a insistir no seu pedido – nas quais se sucedem as explicações sobre os motivos que orientam a conduta discreta, face ao que está acontecendo no país, e a afirmação, baseada nas palavras de uma autoridade militar, homem de bem e de caráter de que Índio Brum Vargas não estava sendo maltratado nem torturado.

            Anos depois, entre os livros de denúncias, memórias e depoimentos dos que sofreram os desacertos do regime de exceção, instalado no país por tão longos anos, o testemunho daquele que “não fora nem maltratado, nem torturado”: Guerra é guerra, dizia o torturador. Publicado pela CODECRI em 1981, é um título que não deixa dúvidas sobre o teor dos relatos que dele fazem parte. E que demonstram que nem sempre as palavras de um homem de bem e de caráter podem ou devem ser levadas a sério mesmo quando referendas por um alto dignatário da Igreja  

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