A
história tem o começo na véspera de seus noventa anos e se interrompe, meses
depois, quando o narrador vislumbra ser condenado
a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois de [seus cem] anos. Itinerário das emoções que se lhe
revelam quando se descobre um homem amoroso cujo relato, num registro de tempo
minucioso, permite a presença de lembranças da infância, de suas lides com as
palavras e com o mundo feminino, numa vida transcorrida, rotineira, na velha
casa que herdou dos pais.
E
o mundo ficcional de Gabriel Garçía Márquez, mais uma vez, se faz sob o signo
da perfeição na trama feita do sentimento que desabrocha, no cenário que um
esboço breve não torna menos imprescindível, na esplêndida tessitura do tempo
narrativo, na parcimoniosa inserção de um talvez inexplicável na realidade
cotidiana, no inconfundível domínio da expressão.
Na simplicidade de um texto que não faz alarde
dos meandros estilísticos e cuja força se mostra no alcance insinuante das
palavras, a presença do adjetivo se faz notar. Mais do que pela posição na
frase, ou pelo seu número, impressiona pelo significado inesperado que adquire.
Em geral, salvo uma ou outra exceção em que aparecem antepostos (nítidas, inevitáveis soaram as badaladas das doze da noite), ou
antepostos e pospostos ao mesmo substantivo (meu lento animal aposentado
despertou de seu longo sono), os adjetivos aparecem depois do substantivo. Pouco menos de uma dezena de vezes, três
adjetivos modificam um mesmo substantivo e (salvo uma vez) , sempre para
qualificar pessoas: a fiel Damiana quando jovem era indiática, forte e silvestre;
vê, pela primeira vez, a menina que irá lhe ocupar o coração, adormecida, nua e desamparada. Mais abundante, é o uso de dois adjetivos
entre o qual se destacam aqueles que atribuem qualidades ou estados opostos
como as chuvas que depois de três meses
de seca podiam ser tão providenciais como devastadoras; ou, diante dos estragos que fez, no quarto, por ciúme, a
menina escondeu a cabeça entre os
braços, aterrada mas intacta. Ou,
ainda, aquele em que um dos adjetivos indica uma qualidade permanente e o
outro, uma qualidade acidental: a menina era morena e morna, seus dedos dos pés, longos e sensíveis; o dono da fábrica de camisas era um libanês paquidérmico e taciturno e a dona do bordel tinha os olhos diáfanos e cruéis.
No
entanto, ao justapor apenas um adjetivo ao substantivo é que aparece o
inesperado das combinações. Para dizer da rapidez com que uma jovem
desconhecida passa por ele, o narrador a qualifica de moça instantânea; ao confessar que o cinema não é um gênero que lhe
agrada, lembra que dele se desinteressou totalmente diante do culto obsceno pela Shirley Temple. Qualifica
as meretrizes com grande prática de seu ofício de putas graduadas. Da menina encomendada para comemorar o seu aniversário
diz que os lábios são intensos e o
suor, fosforescente. No jornal onde
trabalhava, reconstruía e completava as notícias do mundo que recolhia no
código Morse em prosa indígena. E, quando a junção de um adjetivo com um
substantivo parece ser apenas
corriqueira (águas verdes) ,
ela, no entanto, se enriquece ao estar
inserida numa seqüência em que o mundo real, percebido pelo personagem, se
mostra transformado sob a luz da lua: A
lua estava chegando ao centro do céu
e o mundo parecia como submerso em águas verdes.
Próprio desse mago das letras que é Gabriel
García Márquez, este sóbrio emprego do adjetivo, uma ou outra metáfora, um ou
outro símile e cada palavra no seu lugar são suficientes para criar um texto
inimitável e fascinante.

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