domingo, 9 de janeiro de 2005

Os signos do mago

            A capa, num discreto tom indefinível sobre o qual se estampa a foto de Gabriel García Márquez de costas, todo de branco, ligeiramente alquebrado, caminhando para o desconhecido, não condiz com o romance Memórias de mis putas tristes que a Editorial Sudamericana (e a Mondadori e seus co-editores) lançou no mês de outubro de 2004 na Argentina. Porque embora este último livro do autor colombiano tenha como personagem um homem feio, tímido e anacrônico que pretende festejar, a contento, a passagem de seu nonagésimo aniversário e que, por vezes, desconfie que a sua hora é chegada, ao se dispor a escrever a memória de seu grande amor, e, sobretudo, de vivê-lo, é um hino à vida e à esperança e pouco tem a ver com a tristeza da decrepitude sem futuro.

            A história tem o começo na véspera de seus noventa anos e se interrompe, meses depois, quando o narrador vislumbra ser condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois de [seus cem] anos. Itinerário das emoções que se lhe revelam quando se descobre um homem amoroso cujo relato, num registro de tempo minucioso, permite a presença de lembranças da infância, de suas lides com as palavras e com o mundo feminino, numa vida transcorrida, rotineira, na velha casa que herdou dos pais.

            E o mundo ficcional de Gabriel Garçía Márquez, mais uma vez, se faz sob o signo da perfeição na trama feita do sentimento que desabrocha, no cenário que um esboço breve não torna menos imprescindível, na esplêndida tessitura do tempo narrativo, na parcimoniosa inserção de um talvez inexplicável na realidade cotidiana, no inconfundível domínio da expressão.

 Na simplicidade de um texto que não faz alarde dos meandros estilísticos e cuja força se mostra no alcance insinuante das palavras, a presença do adjetivo se faz notar. Mais do que pela posição na frase, ou pelo seu número, impressiona pelo significado inesperado que adquire. Em geral, salvo uma ou outra exceção em que aparecem antepostos (nítidas, inevitáveis soaram as badaladas das doze da noite), ou antepostos e pospostos ao mesmo substantivo (meu lento animal aposentado despertou de seu longo sono), os adjetivos aparecem depois do substantivo.    Pouco menos de uma dezena de vezes, três adjetivos modificam um mesmo substantivo e (salvo uma vez) , sempre para qualificar pessoas: a fiel Damiana quando jovem era indiática, forte e silvestre;  vê, pela primeira vez, a menina que irá lhe ocupar o coração, adormecida, nua e desamparada.  Mais abundante, é o uso de dois adjetivos entre o qual se destacam aqueles que atribuem qualidades ou estados opostos como as chuvas que  depois de três meses de seca podiam ser tão providenciais como devastadoras; ou, diante  dos estragos que fez, no quarto, por ciúme, a menina escondeu  a cabeça entre os braços, aterrada mas intacta. Ou, ainda, aquele em que um dos adjetivos indica uma qualidade permanente e o outro, uma qualidade acidental: a menina era morena e morna, seus dedos dos pés, longos e sensíveis; o dono da fábrica de camisas era um libanês paquidérmico e taciturno e a dona do bordel tinha os olhos diáfanos e cruéis.

            No entanto, ao justapor apenas um adjetivo ao substantivo é que aparece o inesperado das combinações. Para dizer da rapidez com que uma jovem desconhecida passa por ele, o narrador a qualifica de moça instantânea; ao confessar que o cinema não é um gênero que lhe agrada, lembra que dele se desinteressou totalmente diante do culto obsceno pela Shirley Temple. Qualifica as meretrizes com grande prática de seu ofício de putas graduadas. Da menina encomendada para comemorar o seu aniversário diz que os lábios são intensos e o suor, fosforescente. No jornal onde trabalhava, reconstruía e completava as notícias do mundo que recolhia no código Morse em prosa indígena.  E, quando a junção de um adjetivo com um substantivo parece ser apenas  corriqueira (águas verdes) , ela, no entanto,  se enriquece ao estar inserida numa seqüência em que o mundo real, percebido pelo personagem, se mostra transformado sob a luz da lua: A lua estava chegando ao centro do céu e o mundo parecia como submerso em águas verdes.

             Próprio desse mago das letras que é Gabriel García Márquez, este sóbrio emprego do adjetivo, uma ou outra metáfora, um ou outro símile e cada palavra no seu lugar são suficientes para criar um texto inimitável e fascinante.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário