domingo, 16 de janeiro de 2005

Com que direito?


 

            Quando o que então acontecia nos países do Continente, ainda era preciso que ficasse em segredo, houve livros que, duramente minuciosos, descreveram o que se passava nos subterrâneos

da repressão. Os romances Sesenta muertos en la escalera de Carlos Droguett, El señor Presidente de Miguel Angel Asturias, La canción de nosotros de Eduardo Galeano, El Fiscal de Augusto Roa Bastos, Libro de navios y borrascas de Daniel Moyano e, mais tardiamente, La fiesta del chivo de Mario Vargas Llosa, entre outros, registraram morticínios e torturas que efetivamente aconteciam nos porões das ditaduras, durante essas décadas em que elas foram toleradas (senão patrocinadas) por  países do Hemisfério Norte. Depois, quando a censura já não tinha meios para impedir, o testemunho veio para reafirmar o que fora tido como ficção.


Em 1999, hoje em quarta edição, Flávio Tavares publica Memórias do esquecimento, apresentado pela Editora Globo como o primeiro relato descarnado e cru sobre uma época tumultuada da História Brasileira – os anos da luta armada contra a ditadura e da repressão da própria ditadura.

            Um texto impecável em que o lirismo e a crença na utopia dão a medida do homem que por sua crença na ação para mudar o país e fazê-lo diferente do que era – nas suas mazelas de subdesenvolvimento – o sistema procurou destruir.

            Flávio Tavares conseguiu sobreviver às torturas e às humilhações. Novamente, num ato de coragem, trinta anos passados, enfrenta as lembranças desse tempo de horror em que deixou de ser considerado um ser humano para passar à condição de bode expiatório, cujas culpas aqueles que aplicavam as penas não sabiam mensurar. Possuídos, somente, de uma raiva doentia, não tinham idéia do que era seu próprio país e muito menos como ele deveria ser e  prendiam e torturavam para defender interesses que nem sabiam quais eram e, muito menos, de quem.

            Um exemplo disso foi a prisão do coronel Nicolau José de Seixas que, em 1940-45, fizera parte da Força Expedicionária Brasileira, demonstrando, na Itália, uma imensa bravura. No Exército, todos sabiam que nunca tinha sido comunista, tampouco subversivo o que fora invocado, em 1964, para afastá-lo, da vida militar. Num dos interrogatórios a que foi submetido, Flávio Tavares soube que tinha sido levado de Brasília para o Rio de Janeiro, tido como guerrilheiro. Ele, que sete anos antes, como Chefe do Serviço de Repressão ao Contrabando, desbaratara o campo de treinamento militar de Dianópolis, a primeira tentativa da guerrilha da esquerda no Brasil. Preso, devia responder às perguntas  feitas por um de  seus antigos companheiro de armas na Segunda Guerra Mundial, admirador da coragem com que ajudara os tanques do V Exército norte-americano  que a ofensiva alemã estava a ponto de fazer recuar. Flávio Tavares então pergunta: Agora, 25 anos depois, que direito tinham esses oficiais, que faziam a guerra com aparelhos de tortura, de prender e interrogar a quem de fato guerreara num campo de batalha ?.  Uma pergunta válida, também, em relação a todos os demais que foram presos e muitas vezes absolutamente sem razão – se razão houvesse por parte daqueles que prendiam. Como foi o caso do rapaz, filho de um pastor batista do bairro da Tijuca, preso por engano, porque era loiro e eles procuravam um loiro e a quem barbaramente torturaram. Ou a prisão e tortura das duas mulheres que não pertenciam a qualquer movimento de resistência. Elas eram acusadas, porém, de cumplicidade familiar, um crime não previsto sequer na totalitária Lei de Segurança Nacional, mas constante dos manuais de tortura elaborados na School of the Américas, mantida pelo Exército dos Estados Unidos, na zona militar do Panamá e, como tal, executado ao pé da letra pelo militarismo brasileiro e latino-americano em geral: se algum suspeito fugisse ou não fosse encontrado, em seu lugar prendiam-se os parentes mais próximos, para forçá-lo a entregar-se. Então, uma por ser irmã, outra por ser mulher de um suspeito de subversão, nuas, elas foram torturadas noite adentro.

            A resposta para essa pergunta de Flávio Tavares, e, certamente, para a de muitos outros brasileiros, está contida na prática da lei  do mais forte. Que, na verdade, em certos países, é a única vigente, sempre a permitir perenes desajustes sociais: concessão de privilégios, os mais absurdos para uns, e recusa, à maioria, das mais básicas necessidades para viver com dignidade. Assim, a leitura das Memórias do esquecimento além da indignação que provoca diante do que foi vivido por Flávio Tavares (e outros), se acrescenta, e, não menos cruel, a certeza de que, nesta passagem de tantos anos, pouco ou nada mudou no país. Para aqueles que penaram buscando mudanças o sofrimento resultou em vão.

 

 

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