Quando
o que então acontecia nos países do Continente, ainda era preciso que ficasse
em segredo, houve livros que, duramente minuciosos, descreveram o que se
passava nos subterrâneos
da repressão. Os romances Sesenta
muertos en la escalera de Carlos Droguett, El señor Presidente de
Miguel Angel Asturias, La canción de nosotros de Eduardo Galeano, El
Fiscal de Augusto Roa Bastos, Libro de navios y borrascas de Daniel
Moyano e, mais tardiamente, La fiesta del chivo de Mario Vargas Llosa,
entre outros, registraram morticínios e torturas que efetivamente aconteciam
nos porões das ditaduras, durante essas décadas em que elas foram toleradas
(senão patrocinadas) por países do
Hemisfério Norte. Depois, quando a censura já não tinha meios para impedir, o
testemunho veio para reafirmar o que fora tido como ficção.
Em 1999, hoje
em quarta edição, Flávio Tavares publica Memórias do esquecimento, apresentado
pela Editora Globo como o primeiro relato
descarnado e cru sobre uma época tumultuada da História Brasileira – os anos da
luta armada contra a ditadura e da repressão da própria ditadura.
Um
texto impecável em que o lirismo e a crença na utopia dão a medida do homem que
por sua crença na ação para mudar o país e fazê-lo diferente do que era – nas
suas mazelas de subdesenvolvimento – o sistema procurou destruir.
Flávio
Tavares conseguiu sobreviver às torturas e às humilhações. Novamente, num ato
de coragem, trinta anos passados, enfrenta as lembranças desse tempo de horror
em que deixou de ser considerado um ser humano para passar à condição de bode
expiatório, cujas culpas aqueles que aplicavam as penas não sabiam mensurar.
Possuídos, somente, de uma raiva doentia, não tinham idéia do que era seu
próprio país e muito menos como ele deveria ser e prendiam e torturavam para defender
interesses que nem sabiam quais eram e, muito menos, de quem.
Um
exemplo disso foi a prisão do coronel Nicolau José de Seixas que, em 1940-45,
fizera parte da Força Expedicionária Brasileira, demonstrando, na Itália, uma
imensa bravura. No Exército, todos sabiam que nunca tinha sido comunista,
tampouco subversivo o que fora invocado, em 1964, para afastá-lo, da vida militar.
Num dos interrogatórios a que foi submetido, Flávio Tavares soube que tinha
sido levado de Brasília para o Rio de Janeiro, tido como guerrilheiro. Ele, que
sete anos antes, como Chefe do Serviço de Repressão ao Contrabando, desbaratara
o campo de treinamento militar de Dianópolis, a primeira tentativa da guerrilha
da esquerda no Brasil. Preso, devia responder às perguntas feitas por um de seus antigos companheiro de armas na Segunda
Guerra Mundial, admirador da coragem com que ajudara os tanques do V Exército
norte-americano que a ofensiva alemã
estava a ponto de fazer recuar. Flávio Tavares então pergunta: Agora, 25 anos depois, que direito tinham
esses oficiais, que faziam a guerra com aparelhos de tortura, de prender e interrogar a quem de fato guerreara num
campo de batalha ?. Uma pergunta
válida, também, em relação a todos os demais que foram presos e muitas vezes
absolutamente sem razão – se razão houvesse por parte daqueles que prendiam.
Como foi o caso do rapaz, filho de um pastor batista do bairro da Tijuca, preso
por engano, porque era loiro e eles procuravam um loiro e a quem barbaramente
torturaram. Ou a prisão e tortura das duas mulheres que não pertenciam a
qualquer movimento de resistência. Elas eram acusadas, porém, de cumplicidade familiar, um crime não previsto sequer na totalitária
Lei de Segurança Nacional, mas constante dos manuais de tortura elaborados na
School of the Américas, mantida pelo Exército dos Estados Unidos, na zona
militar do Panamá e, como tal, executado ao pé da letra pelo militarismo
brasileiro e latino-americano em geral: se algum suspeito fugisse ou não fosse encontrado, em seu lugar prendiam-se os
parentes mais próximos, para forçá-lo a entregar-se. Então, uma por ser
irmã, outra por ser mulher de um suspeito de subversão, nuas, elas foram
torturadas noite adentro.
A
resposta para essa pergunta de Flávio Tavares, e, certamente, para a de muitos
outros brasileiros, está contida na prática da lei do mais forte. Que, na verdade, em certos
países, é a única vigente, sempre a permitir perenes desajustes sociais:
concessão de privilégios, os mais absurdos para uns, e recusa, à maioria, das
mais básicas necessidades para viver com dignidade. Assim, a leitura das Memórias
do esquecimento além da indignação que provoca diante do que foi vivido por
Flávio Tavares (e outros), se acrescenta, e, não menos cruel, a certeza de que,
nesta passagem de tantos anos, pouco ou nada mudou no país. Para aqueles que
penaram buscando mudanças o sofrimento resultou em vão.
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