domingo, 6 de fevereiro de 2005

A visão

 
           Ai de nós se esquecermos do que aconteceu em nossa própria casa, escreveu Victor de Brito Velho sobre os expurgos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde lecionava, quando foi afastado pela ditadura. Palavras que aparecem, em epígrafe, no livro Guerra é guerra, dizia o torturador (Rio de Janeiro, Codecri, 1981), de Índio Vargas, seu ex-aluno, preso em 1970 a quem visitou na cadeia, interferindo para que fosse bem tratado e, logo, ao sabê-lo com a saúde comprometida, empenhando-se para que fosse transferido para um hospital. Atitude solidária, talvez rara nesses dias de apreensões, como foi também a do poeta Jorge Afif Simões Filho ao escrever a uma autoridade eclesiástica de Porto Alegre, pedindo que cessassem as torturas a que submetiam Índio Vargas e que fosse posto em liberdade. Na resposta (transcrita no livro de Jorge Afif Simões Neto, Em nome do pai, Edição do autor, 2004), baseada em palavras da autoridade constituída, a assertiva de que o preso em questão não estava sendo maltratado ou torturado.
            Uma afirmativa que é negada, onze anos depois, quando vem à luz o depoimento de Índio Vargas sobre a sua militância política, sua prisão e sua experiência como preso da repressão do regime militar brasileiro que se amplia no esboço de perfis e em pertinentes observações sobre esse universo sui generis do qual, inesperadamente e sem escolha, teve que fazer parte. E que se mostra contrário às afirmações das autoridades da época, respaldadas pela comissão de parlamentares que se prestaram a observar o preso de longe, ouvir suas palavras através de um microfone e se permitiram, então, tirar abalizadas conclusões. Que, naturalmente, bem distantes estavam do que verdadeiramente ocorria nos órgãos de segurança, cujos quadros não precisavam respeitar  quaisquer limites ao perseguir os seus fins. E disto, não ficou dúvidas para Índio Vargas. Primeiro sofreu o chá de banco, uma ante-sala da tortura onde permaneceu, sem descanso e sem alimento durante dezesseis horas que poderiam ter sido trinta como o foram para outros. Depois, a tortura que não deixa marcas: o choque elétrico. Enrolaram os fios nas suas mãos e acionaram a manivela do aparelho, fazendo-o estremecer e originando a sensação de desintegração física e psíquica, quando se recusou a consentir em respostas cujas perguntas eram consideradas por ele irrespondíveis. Choques que se repetiram na insistência motivada pela ânsia de obter as informações que precisavam: algemaram-lhe as mãos e ataram os fios nas orelhas, dando-lhe a impressão de que sua cabeça ia explodir e que seu corpo girava como um carrossel.  Práticas que se aliavam a de obrigá-lo a presenciar interrogatórios de companheiros, feitos em meio a bofetadas e pontapés, cenas que arrebentavam os nervos tanto quanto escutar os gritos terríveis, dentre os quais sobressaía um grito de mulher, fino, cortante [...]. Depois, dia e noite, na cela, os gritos de gente na tortura, os sons abafados das batidas e dos gemidos, como se as pessoas fossem perdendo as forças, se exaurindo lentamente e cujos gemidos chegavam débeis, quase imperceptíveis. 

            Em meio a esse caos, ordenado por uma lógica malsã e a sua sinfonia macabra composta pelos gritos de horror dos presos políticos, a cena presenciada em certa manhã de maio de 1970. Índio Vargas e outros presos seriam transferidos do Presídio Central de Porto Alegre, onde estavam, para a Ilha do Presídio, considerada “um verdadeiro campo de concentração. Afastado da fila que se encaminhava para o novo destino, Índio Vargas presenciou o que diz ter sido o espetáculo mais pungente que assistiu em sua vida. Primeiro, escutou o barulho dos passos, logo, viu os presos comuns, trazidos da Ilha do Presídio para dar lugar aos presos políticos para lá enviados: Uma longa fila de homens encurvados, cabisbaixos, arrastava-se penosamente tentando galgar os degraus da escada para chegar à galeria. O portão de ferro foi aberto e alguns entraram, passos lentos. Outros não tinham forças para subir a escada de três andares e vinham sendo ajudados pelos guardas. Eram aproximadamente cem homens, um pouco mais, talvez, quase todos de cor, negros, mulatos, um ou outro branco. Esquálidos, rostos encovados, a pele parecia que ia furar os ossos descarnados. As roupas eram farrapos imundos, verdadeiros molambos. Alguns vestiam apenas calção ou calça, sem camisa. Pés no chão, nenhum calçava sapato ou tamanco.

            Era, certamente, ter diante de si brasileiros que, sob a custódia da lei, se haviam transformado em indigentes ou assim permaneciam, famintos e impotentes diante do que lhes ocorria. Não apenas privados da liberdade, mas, principalmente, daquilo que deve ser sempre, o mais inviolável: a condição humana.

            Pouco depois, Índio Vargas foi algemado e junto com seus companheiros, encerrado no camburão e levado ao que poderia ser mais um interrogatório, mais uma sessão de tortura.

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