Ai de nós se esquecermos do que aconteceu
em nossa própria casa, escreveu
Victor de Brito Velho sobre os
expurgos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde lecionava, quando
foi afastado pela ditadura. Palavras que aparecem, em epígrafe, no livro Guerra é guerra, dizia o torturador (Rio de Janeiro, Codecri, 1981),
de Índio Vargas, seu ex-aluno, preso em 1970 a quem visitou na cadeia,
interferindo para que fosse bem tratado e, logo, ao sabê-lo com a saúde
comprometida, empenhando-se para que fosse transferido para um hospital.
Atitude solidária, talvez rara nesses dias de apreensões, como foi também a do
poeta Jorge Afif Simões Filho ao escrever a uma autoridade eclesiástica de
Porto Alegre, pedindo que cessassem as torturas a que submetiam Índio Vargas e
que fosse posto em liberdade. Na resposta (transcrita no livro de Jorge Afif
Simões Neto, Em nome do pai, Edição do autor, 2004), baseada
em palavras da autoridade constituída, a assertiva de que o preso em questão
não estava sendo maltratado ou torturado.
Uma
afirmativa que é negada, onze anos depois, quando vem à luz o depoimento de
Índio Vargas sobre a sua militância política, sua prisão e sua experiência como
preso da repressão do regime militar brasileiro que se amplia no esboço de
perfis e em pertinentes observações sobre esse universo sui generis do qual,
inesperadamente e sem escolha, teve que fazer parte. E que se mostra contrário
às afirmações das autoridades da época, respaldadas pela comissão de
parlamentares que se prestaram a observar o preso de longe, ouvir suas palavras
através de um microfone e se permitiram, então, tirar abalizadas conclusões.
Que, naturalmente, bem distantes estavam do que verdadeiramente ocorria nos
órgãos de segurança, cujos quadros não precisavam respeitar quaisquer limites ao perseguir os seus fins.
E disto, não ficou dúvidas para Índio Vargas. Primeiro sofreu o chá de banco, uma ante-sala da tortura
onde permaneceu, sem descanso e sem alimento durante dezesseis horas que
poderiam ter sido trinta como o foram para outros. Depois, a tortura que não
deixa marcas: o choque elétrico. Enrolaram os fios nas suas mãos e acionaram a
manivela do aparelho, fazendo-o estremecer e originando a sensação de desintegração física e psíquica, quando se recusou a
consentir em respostas cujas perguntas eram consideradas por ele
irrespondíveis. Choques que se repetiram na insistência motivada pela ânsia de
obter as informações que precisavam: algemaram-lhe as mãos e ataram os fios nas
orelhas, dando-lhe a impressão de que sua cabeça ia explodir e que seu corpo girava como um carrossel. Práticas que se aliavam a de obrigá-lo a
presenciar interrogatórios de companheiros, feitos em meio a bofetadas e
pontapés, cenas que arrebentavam os nervos tanto quanto
escutar os gritos terríveis, dentre os
quais sobressaía um grito de mulher,
fino, cortante [...]. Depois, dia e noite, na cela, os gritos de gente na tortura, os
sons abafados das batidas e dos
gemidos, como se as pessoas fossem perdendo as forças, se exaurindo lentamente e
cujos gemidos chegavam débeis, quase
imperceptíveis.
Em
meio a esse caos, ordenado por uma lógica malsã e a sua sinfonia macabra composta pelos
gritos de horror dos presos políticos, a cena presenciada em certa manhã de
maio de 1970. Índio Vargas e outros presos seriam transferidos do Presídio
Central de Porto Alegre, onde estavam, para a Ilha do Presídio, considerada “um
verdadeiro campo de concentração. Afastado da fila que se encaminhava para o
novo destino, Índio Vargas presenciou o que diz ter sido o espetáculo mais pungente
que assistiu em sua vida. Primeiro, escutou o barulho dos passos, logo, viu os
presos comuns, trazidos da Ilha do Presídio para dar lugar aos presos políticos
para lá enviados: Uma longa fila de
homens encurvados, cabisbaixos, arrastava-se penosamente tentando galgar os
degraus da escada para chegar à galeria. O portão de ferro foi aberto e alguns
entraram, passos lentos. Outros não tinham forças para subir a escada de três
andares e vinham sendo ajudados pelos guardas. Eram aproximadamente cem homens,
um pouco mais, talvez, quase todos de cor, negros, mulatos, um ou outro branco.
Esquálidos, rostos encovados, a pele parecia que ia furar os ossos descarnados.
As roupas eram farrapos imundos, verdadeiros molambos. Alguns vestiam apenas
calção ou calça, sem camisa. Pés no chão, nenhum calçava sapato ou tamanco.
Era,
certamente, ter diante de si brasileiros que, sob a custódia da lei, se haviam
transformado em indigentes ou assim permaneciam, famintos e impotentes diante
do que lhes ocorria. Não apenas privados da liberdade, mas, principalmente,
daquilo que deve ser sempre, o mais inviolável: a condição humana.
Pouco
depois, Índio Vargas foi algemado e junto com seus companheiros, encerrado no
camburão e levado ao que poderia ser mais um interrogatório, mais uma sessão de
tortura.
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