Era um
contraste chocante aqueles homens fortes, de olhar ativo, barriga para dentro,
peito para fora, seguros de sua segurança, caminhando no meio daqueles presos
sumidos no fundo das celas, sem perspectivas, sem esperanças. Índio Vargas.
No
dia da visita, as cadeiras eram postas perto das paredes e os torturadores se
misturavam, com descrição, aos presos e, assim, se mantinham diante dos abraços
e das confidências. Somente até a saída das visitas quando tudo voltava ao normal: socos, pontapés,
insultos, humilhações na sala destinada ao chá de banco onde as pessoas que eram presas aguardavam o
interrogatório. O início de um itinerário desconhecido e do qual os que o
percorriam ignoravam não apenas o tempo que iria durar, mas qual, exatamente –
a liberdade, a morte? – seria o seu fim.
Índio
Vargas, preso em abril de 1970, desse percurso deixa o testemunho em Guerra
é guerra, dizia o torturador (Rio de Janeiro, Codecri, 1981). Um
testemunho que registra as abomináveis
violências, cometidas nas salas improvisadas para tais fins, em próprios da
União, e nos cenários grotescos que lhe vão sendo descortinados e não menos
grotescas as ações que neles aconteciam. São corredores e escadarias, salas sem
móveis ou providas de colchões estendidos no chão, vidros das janelas vedados
com jornal. No Presídio Central de Porto Alegre, o corredor úmido de uma galeria imunda, infestado de baratas e percevejos, cada preso isolado numa cela
suja, provavelmente idêntica àquela em que estava Índio Vargas, provida de uma cama com um colchão seboso, um cobertor, latrina, pia com a água desligada, os vidros da
janela quebrados. Na Ilha do Presídio, a cadeia era uma masmorra na mais rigorosa acepção do termo.
Sem janelas nem portas, tinha “uma pequena abertura no fim do corredor, que
servia para ventilar a munição que antigamente era ali depositada e o portão de
entrada. A luz do sol era indireta e
precária. Em tais cenários, conduzindo a ação, toda uma gama de autoridades
que, salvo as exceções confirmadoras da regra, se atribuíam inusitados
direitos: invadir e revistar locais onde pretendiam que houvesse algum
suspeito; prender, interrogar durante muitas horas o preso que, inocente ou
não, era tratado com palavrões, ameaças, torturas. Práticas todas, justificadas
por tais autoridades que chamavam de
guerra a sanha contra os seus assim considerados inimigos – desarmados e
destituídos de seus direitos de cidadão – estabelecendo um confronto de forças
sabidamente desiguais. De um lado, aquele que tinha de aceitar a ameaça – mais
chocante do que o ato em si – e levar um chute na cara e se dar conta de que a dignidade não prospera ali naquele mundo
irracional; aquele que devia se submeter à presença de um soldado, de arma
embalada, durante todas as vinte e quatro horas do dia; aquele que, embora desmilinguido, magro, barbudo e sendo roído
por uma úlcera, podia provocar medo; o que percebia nos outros, o abatimento,
olhos sem brilho, algum com hematomas nos braços, na cara ; o que
sabia que há os que não suportavam e perdiam a razão ou se suicidavam: o que
tomou, dolorosamente, conhecimento da existência do informante; o que precisou,
além de tudo, sofrer a humilhação de escutar as propostas – ingênuas ou
capciosas? – de regalias em troca das informações requeridas. Do outro lado, os
que algemavam, falavam aos gritos, davam soco nas mesas, pontapés nos presos
que faziam desnudar-se, que aplicavam os fios elétricos. Eram imbuídos de
convicções, no mínimo curiosas pois, além de não serem alimentadas por
ideologias, levam à truculências que não os tornam, necessariamente,
beneficiários de um sistema cujos interesses tivessem sido ameaçados pelos que se opunham ao governo.
Entre
uns e outros, igualmente partes da gigantesca
engrenagem, então montada, cuja existência nem sempre se mostrou muito
nítida, talvez fosse possível presumir-se a presença da indiferença, da
simulação, do medo. Mas, também, certamente,
da coragem e da solidariedade.
Quando
o barco que o levava, enfrentando as ondas agitadas do rio, se aproximou da
Ilha do Presídio, Índio Vargas se lembrou de Manoel Raymundo Soares, retirado
dessa prisão, para ser assassinado e
jogado, ali no Guaíba, com as mãos amarradas.
O corpo fora resgatado e do necrotério o povo o havia tirado para levá-lo, a
pé, em meio a um forte aparato policial, para o cemitério da Azenha. Ao passar
diante da Pira da Pátria, no Parque Farroupilha, alguém, de coragem, gritou que
deveriam parar ali e o caixão foi depositado no chão, defronte da pira. Numa
simplicidade espontânea e solidária, operários, que trabalhavam numa obra
próxima, trouxeram dois cavaletes e eles mesmos ergueram o caixão.
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