domingo, 13 de fevereiro de 2005

De uns e de outros


Era um contraste chocante aqueles homens fortes, de olhar ativo, barriga para dentro, peito para fora, seguros de sua segurança, caminhando no meio daqueles presos sumidos no fundo das celas, sem perspectivas, sem esperanças. Índio Vargas.  
 
            No dia da visita, as cadeiras eram postas perto das paredes e os torturadores se misturavam, com descrição, aos presos e, assim, se mantinham diante dos abraços e das confidências. Somente até a saída das visitas quando tudo voltava ao normal: socos, pontapés, insultos, humilhações na sala destinada ao chá de banco onde as pessoas que eram presas aguardavam o interrogatório. O início de um itinerário desconhecido e do qual os que o percorriam ignoravam não apenas o tempo que iria durar, mas qual, exatamente – a liberdade, a morte? – seria o seu fim.

            Índio Vargas, preso em abril de 1970, desse percurso deixa o testemunho em Guerra é guerra, dizia o torturador (Rio de Janeiro, Codecri, 1981). Um testemunho que registra as abomináveis violências, cometidas nas salas improvisadas para tais fins, em próprios da União, e nos cenários grotescos que lhe vão sendo descortinados e não menos grotescas as ações que neles aconteciam. São corredores e escadarias, salas sem móveis ou providas de colchões estendidos no chão, vidros das janelas vedados com jornal. No Presídio Central de Porto Alegre, o corredor úmido de uma galeria imunda, infestado de baratas e percevejos, cada preso isolado numa cela suja, provavelmente idêntica àquela em que estava Índio Vargas, provida de uma cama com um colchão seboso, um cobertor, latrina, pia com a água desligada, os vidros da janela quebrados. Na Ilha do Presídio, a cadeia era uma masmorra na mais rigorosa acepção do termo. Sem janelas nem  portas, tinha “uma pequena abertura no fim do corredor, que servia para ventilar a munição que antigamente era ali depositada e o portão de entrada. A luz do sol era indireta e precária. Em tais cenários, conduzindo a ação, toda uma gama de autoridades que, salvo as exceções confirmadoras da regra, se atribuíam inusitados direitos: invadir e revistar locais onde pretendiam que houvesse algum suspeito; prender, interrogar durante muitas horas o preso que, inocente ou não, era tratado com palavrões, ameaças, torturas. Práticas todas, justificadas por tais autoridades  que chamavam de guerra a sanha contra os seus assim considerados inimigos – desarmados e destituídos de seus direitos de cidadão – estabelecendo um confronto de forças sabidamente desiguais. De um lado, aquele que tinha de aceitar a ameaça – mais chocante do que o ato em si – e levar um chute na cara e se dar conta de que a dignidade não prospera ali naquele mundo irracional; aquele que devia se submeter à presença de um soldado, de arma embalada, durante todas as vinte e quatro horas do dia; aquele que, embora desmilinguido, magro, barbudo e sendo roído por uma úlcera, podia provocar medo; o que percebia nos outros, o abatimento, olhos sem brilho, algum com hematomas nos braços, na cara ; o que sabia que há os que não suportavam e perdiam a razão ou se suicidavam: o que tomou, dolorosamente, conhecimento da existência do informante; o que precisou, além de tudo, sofrer a humilhação de escutar as propostas – ingênuas ou capciosas? – de regalias em troca das informações requeridas. Do outro lado, os que algemavam, falavam aos gritos, davam soco nas mesas, pontapés nos presos que faziam desnudar-se, que aplicavam os fios elétricos. Eram imbuídos de convicções, no mínimo curiosas pois, além de não serem alimentadas por ideologias, levam à truculências que não os tornam, necessariamente, beneficiários de um  sistema cujos interesses tivessem sido ameaçados pelos que se opunham ao governo.

            Entre uns e outros, igualmente partes da gigantesca engrenagem, então montada, cuja existência nem sempre se mostrou muito nítida, talvez fosse possível presumir-se a presença da indiferença, da simulação, do medo. Mas, também, certamente,  da coragem e da solidariedade.

            Quando o barco que o levava, enfrentando as ondas agitadas do rio, se aproximou da Ilha do Presídio, Índio Vargas se lembrou de Manoel Raymundo Soares, retirado dessa prisão, para ser assassinado e jogado, ali no Guaíba, com as mãos amarradas. O corpo fora resgatado e do necrotério o povo o havia tirado para levá-lo, a pé, em meio a um forte aparato policial, para o cemitério da Azenha. Ao passar diante da Pira da Pátria, no Parque Farroupilha, alguém, de coragem, gritou que deveriam parar ali e o caixão foi depositado no chão, defronte da pira. Numa simplicidade                    espontânea e solidária, operários, que trabalhavam numa obra próxima, trouxeram dois cavaletes e eles mesmos ergueram o caixão.   

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