domingo, 27 de fevereiro de 2005

Amores e desamores


As dedicatórias do livro e aquelas de alguns textos, assim como as epígrafes são plenas de emoções ou as sugerem. Breves contos, alguns muito próximos da crônica, formam Lâmina do tempo, livro de estréia de Moacyr Moreira, publicado pela Ateliê Editorial de São Paulo, em 2002. Momentos do cotidiano ou do intemporal a exporem a alma humana no indecifrável, no intrincado de seus sonhos, de seus desejos, de suas lembranças, de suas angústias, sobretudo, no seu relacionar-se com o tempo – o título da coletânea bem o sugere, no que ele tem de fugidio. 

            São  vinte e oito  histórias, muitas de amor e quase todas regidas por desencontros. Palavras caladas, gestos não esboçados que se perdem e deixam o domínio apenas da solidão: o adolescente que não consegue expressar o seu afeto, a mulher à espera do marido que não chega, o dissolver-se dos sentimentos, o ato de esquivar-se ao chamado do amor. No entanto, também, muitas vezes, o aceno da esperança: os que percebem os primeiro elos se tecendo; os que descobrem, na faísca do choque entre as pedras, o primeiro mistério da vida; a flor ofertada para consolar num momento de fracasso: minúscula, mostrando-se lentamente: suave, persistente, alvíssima.

            E, entre esses vinte e oito textos, o penúltimo do livro, com menos de duas folhas, conta do enredar-se de um momento sombrio do passado com o luminoso que desabrocha no presente. O seu título, “Navio dos escravos”, se explica no primeiro parágrafo em que, no julgamento de valor, Mais importante que as caravelas foram os navios negreiros, também está contido um entendimento sobre o tráfico negreiro, preso, sobretudo, à emoção ao se referir a homens que não possuem esperanças e que trazem no coração e no caminhar o ritmo de seus rituais. Passado remoto que se insere no presente, diante de um caminhar de mulher, cujo ritmo e elegância a fazem diferente das outras. Anunciado é o seu nome e seu  perfil, no qual prevalece a insubmissão rebelde que a separa de seus antepassados. Talvez neta de escravos em que a pele e os cabelos claros não a eximem de ser filha de Oxossi, de ser banhada pelas águas caudalosos de Iemanjá. E logo, também anunciado o obstáculo para conquistá-la. Ao não ser como as outras, a costumeira oferta de flores e viagens resultaria ineficiente e só o espontâneo levaria à aproximação. O narrador fala de um jogo de sedução – palavras, sorrisos, reticências – e da frase Você hoje está mais mulata, retornando à questão da herança negra. Dela, o motivo para as palavras que enunciam a capitulação feminina: Será  que o amor, as paixões que nos guiam são também herança dos negros? Suficientes para que nada mais necessite ser dito pois os olhares que se cruzam expressam a  inexistência de leis, a instauração das rebeldias.

            Nesse universo de ficção em que desabrocham amores e amores fenecem, Moacyr Moreira, nascido em 1972, se revela um escritor que sabe perceber os dramas e as alegrias dos corações. Também os desacertos do cotidiano hodierno: Hoje, devido à polidez dos lidares diários, ninguém diz nada a ninguém. As pessoas se odeiam, os dias passam e todos esperam o momento de nunca mais ver o vizinho, o prefeito da cidade, o próprio marido. Ou, aqueles maiores, como no conto “Pólvora úmida”, síntese aproximada, ou não, do que é usual em certos governos, facilmente reconhecíveis nos meandros de seus sistemas, no que possibilitam a existência de poderes absolutos tanto quanto insurreições populares que assumem métodos idênticos aos usados por seus antecessores. Ou, ainda, como em “Grito de gol”, quando testemunha sobre as mazelas do ensino e sobre métodos da repressão exercida no país, nos finais dos anos noventa. O personagem  primeiro, é obrigado a se explicar ao diretor da escola onde lecionava pelo que dissera em sala de aula, definindo a matéria que lecionava e acusando os malditos militares de terem feito uma reforma de ensino que incluía um bando de asneiras e eliminava coisas essências dos currículos. Depois, ao chegar em casa e ver tudo destruído, decidir deixar a cidade, mas, antes disso, ser apanhado e, num carro velho, conduzido a uma espécie de sítio onde foi jogado numa cela com grades. Volta a São Paulo, novos interrogatórios, outros dias de prisão até ser solto perto do Morumbi. Caminhava se afastando do Estádio quando ouviu o grito da multidão a festejar o gol. Entre o barulho dos fogos, também o dos tiros que o mataram.

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