Memória
de mis putas tristes (Buenos Aires, Sudamericana, 2004) relata uma
inusitada aventura de amor. Gabriel García Márquez a inscreve ao longo de doze
meses e lhe dá um porvir cujo tempo se dilui naquele que o personagem presume
irá dedicar ao amor. Alternado de surpresas, encantos, angústias, tristezas é
um viver amoroso intensamente regido pelo império do tempo que o registra no
rigor das horas e na fluidez dos momentos determinados pelos astros.
A
exatidão das horas se relaciona com as chamadas telefônicas do personagem
narrador para pedir a menina que pretende e, sobretudo, com a chegada ao local aprazado para o encontro e
com a sua partida. Assim, no primeiro telefonema, à dona de uma casa
clandestina, a quem recorre, promete chamar dentro de uma hora. Nos outros,
originados de distintas circunstâncias, ele telefona às oito horas para escutar
que o seu pedido não seria possível de satisfazer e quinze minutos depois o telefone toca e, então, sabe que a menina
lhe será entregue. Dias antes, para não
alimentar ilusões, tirara o telefone do gancho, mas às sete da noite, discara
os quatro dígitos, com cuidado, para não se enganar e obtivera a promessa de
que a menina estaria pronta às dez em
ponto. E será sempre esse horário o
combinado para ir à casa de cômodos. Na
primeira vez, chega um pouco antes das dez; na segunda, pontualmente às dez,
assim como nas noites que se seguiram,
após um tempo de ausências; e às dez e vinte, quando decide aceitar o
que a vida estava a lhe oferecer. Nas dez horas da manhã, embora diferentes, já
sentira emoções: quando, transtornado
pela falta da menina, passa os dias sem se banhar e sem se barbear e,
num deles, às dez da manhã, Damiana, sua empregada o encontra nu, deitado na
rede; ou quando, muitos anos antes, no escândalo que impediu o seu casamento,
um pouco antes das dez bateram na sua porta e o chamaram para ficarem sem resposta.
Mas há, igualmente, outros registros de horas precisas: às cinco ele se
levanta; no calor das doze do dia,
vê, na rua, entre a multidão, uma jovem que acredita ser a menina que busca; no
sopor denso das duas da tarde, ele
dormita, perto de sua amiga Casilda Armenta, antes de continuarem com a longa
conversa; e menciona o canto das cigarras no calor das duas horas; para dizer
de seus hábitos, lembra que das seis às onze horas trabalhava no jornal e das
sete até quase às dez, visitava a noiva. E se refere à noite do ano novo em
que, mau grado ser privado da companhia da menina, e ter ido para a cama às
oito horas, dormiu sem amargura.
Impreciso,
o registro do tempo indicado pelos cambiantes da natureza: o amanhecer que
reafirma o momento do dia em que deixa a casa de cômodos; o amanhecer de luz conciliadora a envolver a menina
adormecida; o amanhecer cujos sintomas, perfeitos, só lhe irão oferecer
felicidades. A madrugada, para dizer que então desperta ou adormece e na qual
lhe ocorre a sensação de ter perto sua mãe, morta há muitos anos, de lhe
escutar a voz ou a madrugada dos cães que latem. Anota que foi num meio dia quente que se enganou de porta
e viu Ximena Ortiz na hora da sesta, imagem que o transtornou até o quase
casamento. A lua cheia lhe afeta, um pouco, a saúde e vendo a enorme lua de cobre que se levantava no horizonte sente medo das urgências do
corpo. Outra vez, depois das horas de ansiedade e de tristeza em que procurou
fugir de seus anseios, ao soarem as sete badaladas na catedral, percebe essa estrela sozinha e límpida no céu cor de rosa.
Foi num entardecer que enfrentou o aguaceiro
com ventos, ameaçando desengonçar a casa e
os estrépitos da água, o uivo do vento, o relâmpago e seu trovão
que cessou, de repente, em dez minutos. E foi
numa tarde de chuva que encontrou o gato, enroscado na escalinata do portão; e na manhã bem cedo que se deu
conta que o grande aguaceiro habitual, entre os mês de maio e outubro caiu, naquele setembro estranho, depois de três meses de seca. Ainda, dois meses marcam o
passar do tempo e os seus sentimentos: dezembro cujas brisas o emocionaram
quando criança, felicidade que volta a sentir ao acordar perto da menina e
perceber que era o mesmo mês de dezembro que voltava pontual com o céu transparente,
os vendavais e as areias se espalhando. E mormente agosto, o mês de seu
aniversário. Foi quando o sol de agosto
irrompeu de entre as amendoeiras e o
barco fluvial de correio atrasado, por uma semana de seca, entrou bramando no canal do porto que ele decidiu honrar
seus noventa anos com algo que jamais havia querido ter. E’ esse o momento ao
qual se seguem os dias e noites de emoções que ele quer contar em suas
memórias. Uma rota de amor vai-se fazendo até que, finalmente, ele acredita
nela e, radiante, se reconhece a si mesmo. Foi quando o sol irrompeu entre as amendoeiras do parque e o barco fluvial
do correio, atrasado por uma semana de seca, entrou bramando no canal do porto.
O relato
circular se fecha, submisso a um momento temporal, não mais obediente ao signo
do relógio, mas a uma luz efêmera que se filtra das árvores e a um som
igualmente efêmero que se dilui no ar.
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