Mais santo é quem verseja em palavrão.
Dentre
os alfabetizados não há, no país, quem ignore falcatruas, descarados e impunes
roubos, as costumeiras mentiras de todo e qualquer (como sempre, salvo, neste
caso, raríssimas exceções) dirigente ou legislador. Apenas, a ânsia de tirar
proveitos (ou até, muitas vezes, parcos proveitos) ou deles usufruir, faz com
que impere a lei do silêncio ou da hipocrisia, quando afirma inocências ou mal
entendidos. Ninguém, tampouco, ignora as infinitas mazelas do país, cuja
enumeração, de per si, é lamentável e, pela suas proporções, desesperadora, se
houver a intenção de eliminá-las. Então, exatamente como uma voz de todos (ou
de quase todos), se eleva a de Glauco Mattoso, não apenas para dizer o que,
sobejamente, já é sabido, mas, na forma perfeita do soneto.
De
quase mil sonetos numerados, foram escolhidos cem para fazer parte de Poética na Política: cem sonetos panfletários, que a Geração Editorial de São Paulo acaba de publicar neste abril
de 2004. Sem dúvida, eles são um diário dos desmandos do poder e adjacências:
os candidatos a governo, a dívida externa, o comércio exterior, o simulacro das
prisões dos poderosos, os ridículos melindres dos figurões diante de verdades
que precisam negar, o palavrório faccioso, buscando ilibar de evidentes culpas
o cidadão que se considera acima de qualquer suspeita, os tumultos dos
políticos no plenário das instituições às quais devem servir, a total
impunidade dos corruptos, as supostas reformas preconizadas, os aproveitadores
das causas sociais, a frágil liberdade de expressão, a inépcia dos governantes,
o difundido uso do nepotismo e assim por diante, e assim por diante.
Para
versar sobre tais assuntos é preciso prudentemente contorná-los ou não policiar
as palavras que o bom tom e o bom gosto condenariam.
Glauco
Mattoso não prescinde do calão porque, diante do que ocorre, no país – e parece
que sem remissão – é impossível não se indignar e, então, medir palavras.
Todavia, se os palavrões se repetem (porque, na verdade, os desacertos se
repetem sem tréguas) e podem se mostrar impróprios numa tradicional criação
poética, os versos do soneto, obedientes a sua métrica, revelam um conhecedor
da palavra e das suas musicais e harmoniosas combinações.
O
soneto 240, “Revoltado”, em décimas de impecável ritmo e impecáveis rimas, se
constrói em dois tempos. Nos quartetos, um tema que pode ser universal: o
repúdio dos homens pelas tiranias (que nos tempos hodiernos se simplificam em
direita e esquerda) e a rebeldia com que a Humanidade
desrespeita/os mandos e desmandos dos maus guias. Nos tercetos, o drama
pessoal do poeta. Transgride o que é tido por inconteste: o julgamento divino,
que define como cruel, covarde e prepotente ao criar os humanos somente para fazê-los sofrer, indicando, no
uso do nós, compartilhar desse
destino. Que o segundo terceto irá, já em primeira pessoa, revelar na
indignação de um sentir-se lesado: Foi
Ele quem, à minha revelia, cegou-me [...]
Glauco
Mattoso não renega a divindade – e como qualquer crente lhe grafa o nome com
maiúsculas – nesse questionar seus atos, nesse aceitar-se como um penitente cuja expressão é a poesia.
Porém, no lamento do fado que lhe coube, não deixa de estar presente,
sub-reptícia, a pergunta sobre essa apregoada infalibilidade que é inerente aos
numes e que leva à paciente aceitação de todos os males.
Na
ficção, no ensaio e na poesia Glauco Mattoso é tido sempre por um autor
polêmico e que, ainda não se nega – como o fizera nos anos ditatoriais – à
resistências. Certamente, como cidadão do Continente, razões lhe sobram para
isso.
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