domingo, 30 de maio de 2004

Soneto da ira santa


         Mais santo é quem verseja em palavrão. 

            Dentre os alfabetizados não há, no país, quem ignore falcatruas, descarados e impunes roubos, as costumeiras mentiras de todo e qualquer (como sempre, salvo, neste caso, raríssimas exceções) dirigente ou legislador. Apenas, a ânsia de tirar proveitos (ou até, muitas vezes, parcos proveitos) ou deles usufruir, faz com que impere a lei do silêncio ou da hipocrisia, quando afirma inocências ou mal entendidos. Ninguém, tampouco, ignora as infinitas mazelas do país, cuja enumeração, de per si, é lamentável e, pela suas proporções, desesperadora, se houver a intenção de eliminá-las. Então, exatamente como uma voz de todos (ou de quase todos), se eleva a de Glauco Mattoso, não apenas para dizer o que, sobejamente, já é sabido, mas, na forma perfeita do soneto.
            De quase mil sonetos numerados, foram escolhidos cem para fazer parte de Poética na Política: cem sonetos panfletários, que a Geração Editorial de São Paulo acaba de publicar neste abril de 2004. Sem dúvida, eles são um diário dos desmandos do poder e adjacências: os candidatos a governo, a dívida externa, o comércio exterior, o simulacro das prisões dos poderosos, os ridículos melindres dos figurões diante de verdades que precisam negar, o palavrório faccioso, buscando ilibar de evidentes culpas o cidadão que se considera acima de qualquer suspeita, os tumultos dos políticos no plenário das instituições às quais devem servir, a total impunidade dos corruptos, as supostas reformas preconizadas, os aproveitadores das causas sociais, a frágil liberdade de expressão, a inépcia dos governantes, o difundido uso do nepotismo e assim por diante, e assim por diante.

            Para versar sobre tais assuntos é preciso prudentemente contorná-los ou não policiar as palavras que o bom tom e o bom gosto condenariam.

            Glauco Mattoso não prescinde do calão porque, diante do que ocorre, no país – e parece que sem remissão – é impossível não se indignar e, então, medir palavras. Todavia, se os palavrões se repetem (porque, na verdade, os desacertos se repetem sem tréguas) e podem se mostrar impróprios numa tradicional criação poética, os versos do soneto, obedientes a sua métrica, revelam um conhecedor da palavra e das suas musicais e harmoniosas combinações.

            O soneto 240, “Revoltado”, em décimas de impecável ritmo e impecáveis rimas, se constrói em dois tempos. Nos quartetos, um tema que pode ser universal: o repúdio dos homens pelas tiranias (que nos tempos hodiernos se simplificam em direita e esquerda) e a rebeldia com que a Humanidade desrespeita/os mandos e desmandos dos maus guias. Nos tercetos, o drama pessoal do poeta. Transgride o que é tido por inconteste: o julgamento divino, que define como cruel, covarde e prepotente ao criar os humanos  somente para fazê-los sofrer, indicando, no uso do nós, compartilhar desse destino. Que o segundo terceto irá, já em primeira pessoa, revelar na indignação de um sentir-se lesado: Foi Ele quem, à minha revelia, cegou-me [...]

            Glauco Mattoso não renega a divindade – e como qualquer crente lhe grafa o nome com maiúsculas – nesse questionar seus atos, nesse aceitar-se como um penitente cuja expressão é a poesia. Porém, no lamento do fado que lhe coube, não deixa de estar presente, sub-reptícia, a pergunta sobre essa apregoada infalibilidade que é inerente aos numes e que leva à paciente aceitação de todos os males.

            Na ficção, no ensaio e na poesia Glauco Mattoso é tido sempre por um autor polêmico e que, ainda não se nega – como o fizera nos anos ditatoriais – à resistências. Certamente, como cidadão do Continente, razões lhe sobram para isso.       

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