domingo, 23 de maio de 2004

Os vates na Academia

 

De Manuel Bandeira sobre Pablo Neruda: o detentor de um dos maiores potenciais
poéticos
existentes no mundo, [...] voz
mundial da poesia reivindicatória

            No dia 4 de março de 1945, Pablo Neruda havia sido eleito senador da República a região mais dura do Chile, ele diz em Confieso que he vivido: Em poucos lugares do mundo a vida é tão dura e ao mesmo tempo tão desprovida de mimos para vivê-la. Percorrendo-a, como senador eleito por essa gente sem escola e sem sapatos, sua poesia foi-se alimentando dos padecimentos e das lutas, dos amores e dos cantares que presenciou e sentiu; enriquecida pelo que ele chamou de uma dura lição de estética e de busca através dos labirintos da palavra escrita o fizeram chegar a ser poeta de seu povo. Nesse ano, recebe o Prêmio Nacional de Literatura de seu país, ingressa no Partido Comunista Chileno, é convidado para visitar o Brasil e conhecer Luís Carlos Prestes recém posto em liberdade, após dez anos de cativeiro. No dia 15 de julho, diante das cem mil (ou, oitenta mil ou cento e trinta mil) pessoas que lotavam as arquibancadas e o gramado do Estádio Municipal do Pacaembu onde se realizava o comício dos comunistas, Pablo Neruda, na tribuna oficial, ao lhe ser dada a palavra, em vez de um discurso, lê, em espanhol, o poema escrito horas antes, em louvor a Luís Carlos Prestes. Emocionada, a multidão aplaudia a cada verso e tanto que, ao terminar, conforme relata Fernando Morais (Olga, São Paulo, Alfa-Ômega, 1985), como os aplausos não cessassem, voltou ao microfone para repetir o último verso: Silêncio: que o Brasil falará por sua boca.

            Alguns dias depois, no dia 30 de julho, diz Margarita Aguirre (Las vidas del Poeta, Santiago, Zig-Zag, 1967), no Rio de Janeiro, Pablo Neruda é recebido na Academia Brasileira de Letras. Na revista da Instituição (Ano 44, v.70, 1945) consta, no entanto, que a visita ocorreu no dia 26 de julho. Acolhido, na companhia de personalidades (cujos nomes não foram citados na ata que registrou essa sessão), com uma salva de palmas e algumas frases de saudação do Presidente da Casa que a seguir deu a palavra ao poeta Manuel Bandeira. Meu caro Senador Pablo Neruda, assim ele se dirige ao Poeta, pedindo permissão para tratá-lo de senador embora seja o detentor de um dos maiores potenciais poéticos existentes em todo o mundo, porque sabe que ele se envaidece mais do mandato, recebido dos mineiros chilenos, que do Prêmio Nacional de Literatura de seu país que acabara de receber. A seguir, menciona, entre os acadêmicos que fundaram a Instituição, aqueles que dedicaram a mocidade aos ideais que de Pablo Neruda são mais diletos: a justiça social, a liberdade, a república, a democracia. E entre os literatos, os que renovaram o ambiente espiritual brasileiro, imobilizado pelo exaurir romântico. Refere o ter sido a Academia considerada uma instituição reacionária e rebate a asserção com o argumento de que, se assim fosse, não estaria ele, nesse momento, expressando o seu fervor pela poesia livre, impura, romântica, expressionista, profética, originado da leitura de Veinte poemas de amor y una canción desesperada. Cita as palavras de Garcia Lorca (rapaz encantador, raro e potente poeta) quando apresenta Pablo Neruda na Universidade de Madrid, definindo-o como um poeta mais perto da morte do que da filosofia; mais perto da dor que da inteligência; mais perto do sangue do que da tinta. Palavras que Manuel Bandeira endossa, acrescentando que a vida posterior do Poeta iria confirmar tais asserções. E se refere às críticas a Residencia en la tierra (qualifica-o de grande livro) que foi tido como o solilóquio incoerente de um homem que se divorciou da vida que o rodeia e aquelas enunciadas por Amado Alonzo no longo estudo que dedicou à poesia de Pablo Neruda onde consta a insistência com que aparecem nos poemas as palavras ceniza e polvo. E, embora aceitando as pechas que lhe atribuem – céptico, pessimista – Manuel Bandeira pede perdão por repeti-las e afirma que, diante da Espanha em ruínas, a poesia de Pablo Neruda mudou, jurando defender até à morte o que assassinaram na Espanha: o direito à felicidade, tornando-se a voz mundial da Poesia reivindicatória. Encerrando a saudação, Manuel Bandeira menciona Parral, o lugar de nascimento do Poeta, seus dois livros mais conhecidos e que todo o Brasil ouviu comovido a saudação do Pacaembu. Na primeira pessoa plural a englobar os acadêmicos, em nome dos quais se expressa, reconhece no Poeta o sangue, as dores, o justo anelo de felicidade dos mineiros de Tarapacá e Antofogasta e diz da honra de tê-lo como visitante e saúda, na pessoa do Poeta, a sua pátria.
 
            Grandiloqüente e plena de floreios foi a resposta de Pablo Neruda: adjetivos, metáforas, símiles, para recordar os nomes essenciais de Machado de Assis e Euclides da Cunha e dos  rumorosos poetas maiores: Castro Alves, Gonçalves Dias e Alvarez de Azevedo. Irá defini-los como aqueles que atacaram o monumento da tradição e a expressão de sua época e que se tornaram, por sua vez, tradição e monumento, porque não cultivaram um templo vazio mas o coração e o destino do homem e ao inventário da riqueza estética do Brasil, trouxeram  nos seus cantos caudalosos a voz indestrutível de seu povo. Refere-se à atenção que foi dada a sua obra, cujo valor, ele diz, talvez esteja apenas em continuar com o seu tom pessoal, a antiga profissão dos trovadores de amor e de guerra, de fé e esperança. E se atém aos temas de seu canto – as tristezas e as lutas da época em que vive, o louvor aos heróis e a defesa dos ideais. Sem renunciar, no entanto, à herança cultural – o pensamento e a beleza que herdamos – e lhe dar continuidade, entrelaçando o passado com o presente. E, agradecendo a acolhida, diz de seu sonho: uma só América na dignidade da liberdade e na unidade da cultura.

            Nesse por assim dizer diálogo entre os poetas, Manuel Bandeira, que se dirige a Pablo Neruda com o cerimonioso uso do pronome vós, faz menção à episódios recentes de sua vida, que, provavelmente, tenham circulado na imprensa. Porém, ao citar as palavras de Frederico Garcia Lorca numa cerimônia ocorrida há tantos anos passados e as de Amado Alonzo (Poesia y estilo de Pablo Neruda, 1940), demonstra um interesse maior pelo Poeta que será inegável ao expressar a sua admiração por Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924) e Residência en la tierra (1935). Faz referência ao poema “Entrada a la madera” e cita alguns versos de “Oda con un lamento”, de “Arte poética” e de “Madrid” de España en el corazón.

Dirigindo-se aos acadêmicos também a usar o respeitoso vós, é breve a homenagem de Pablo Neruda nessa rápida menção aos cinco autores brasileiros. Sobretudo, ele expressa e reiterando, a humildade – quero deixar uma palavra invalidada por meu menor merecimento, minha pequena história de escritor, a simplicidade de minha poesia – o imenso respeito com que abre os livros do passado.

Donos das palavras e de suas riquezas, os poetas, no recinto das normas e dos preceitos, se deixaram conduzir. E, ao falar com serena sobriedade ou exuberante entusiasmo, a voz de um e de outro resultou contida.

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