domingo, 29 de abril de 2001

Nos meandros da tradução (1)

 
 
            Em abril de 2000, pela Alfaguara, foi publicado La fiesta del chivo de Mario Vargas Llosa, cuja capa reproduz um fragmento da Alegoria de un mal gobierno de Ambrogio Lorenzetti, num projeto gráfico de Enric Satué. No mesmo ano, apareceu, no Brasil, pela Mandarim de São Paulo, traduzido por Wladir Dupont. Na capa, o mesmo fragmento de Ambrogio Lorenzetti, a mesma composição em linhas paralelas, diferindo, apenas, a disposição das informações (título da obra, nome do autor e da casa editora) e a cor das tarjas em que elas estão posicionadas.A autoria desse projeto gráfico (ainda que a meias, pois a escolha da ilustração é de Enric Satué) é de Daniel Rampazzo. Antecedendo o texto, uma breve nota do editor explica o título do romance, originado de uma festa popular que ocorre em vários países da América hispânica quando se comem bodes assados, se bebe e se dança. Sendo chivo (bode) o apelido de Rafael Leônidas Trujillo Molina, o “general” que durante trinta anos tiranizou Santo Domingo, a sua morte originará a festa da libertação. Morte que vai sendo anunciada na preparação do atentado cuja narrativa se entremeia com aquela que dá conta das últimas vinte e quatro horas vividas por Trujilo e com a que vai fazendo Urania, dominicana que volta a seu país para acertar contas consigo mesma, trinta anos depois de ter partido para os Estados Unidos. É desse retorno que trata o primeiro capítulo do romance.
            De manhã cedo, Urania sai do hotel e caminha pelas ruas centrais da cidade. Seu olhar vai percebendo as mudanças sofridas, provocando as lembranças de uma infância abruptamente truncada pela atitude canalha do pai. E é para a casa, onde velho e doente, ele vegeta, cuidado por uma enfermeira, que seus passos a levam. Nessa dezena de páginas que constituem o capítulo, o relato é feito numa linguagem chã e despretensiosa, em nenhum momento enriquecida por quaisquer recursos estilísticos ou por esses “achados” de estilo, surpreendentes e únicos, próprios dos grandes escritores. Razão suficiente para tornar inaceitável os desvios – acréscimos, eliminações, mudanças de tempos verbais e substituições de palavras – que povoam a tradução. Assim, no texto em que Urania se lembra da satisfação do pai em sabê-la excelente aluna. No original, ele se vangloria diante de seus amigos da filha estudiosa, dada como exemplo pelas freiras do colégio. Na tradução, foi acrescentado o adjetivo orgulhoso para qualificar o pai, adjetivo que, embora não atraiçoe o sentido da frase, nada lhe acrescenta, pois o sentimento de orgulho já esta implícito no verbo jactar-se do original. Noutros casos, porém, o acréscimo resultou em modificação do sentido. Ao falar do número de habitantes da cidade no momento em que a deixou, Urania diz que abrigava trezentas mil almas. Em português, foi acrescentado um artigo indefinido (abrigava umas trezentas mil almas) o que, evidentemente, anula a precisão contida no original. Outro acréscimo a mudar o sentido do texto é o advérbio talvez na frase em que Urania acha a cidade mais calada, menos frenética e que na tradução aparece como talvez fosse mais silenciosa, menos frenética. Ou quando o texto original fala de uma calçada quebrada e a tradução de uma calçada toda quebrada.

            Constituindo-se pequenos deslizes, como introduzir uma interjeição no início de oração; ou algo mais comprometedor como inventar um Afinal o Chefe numa frase em que o sujeito embora esteja oculto é conhecido, pois claramente mencionado em linhas anteriores, um ou outro acréscimo se justifica: quando busca tornar mais clara uma expressão. É o caso da seqüência em que Urania caminha depressa, reconociendo los hitos. Na tradução, foi acrescentado da cidade para completar o sentido da expressão marcos, que sem ela seria, sem dúvida, menos compreensível.

 Na verdade, são algumas liberdades que o tradutor se permitiu que, certamente, não chegam a estabelecer grandes distâncias entre um texto e outro. Porém, se a elas se acrescentam outras – as que se relacionam com a eliminação de palavras ou expressões, por exemplo – as imperfeições já não poderão ser tão facilmente desculpáveis.   

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