Depois de o Señor Presidente, El recurso del método, El
otoño del patriarca e Yo, el supremo
não se trata de tarefa muito fácil escrever um romance cujo tema seja um
ditador. Assim, ainda que busque no recurso narrativo de entrelaçar histórias –
recurso já usado, com maestria, em Conversación
en la Catedral – algo de efeito, Mario Vargas Llosa não consegue em La fiesta del chivo (que a Editora Mandarim, de São Paulo, traduziu no ano 2000) mais
do que uma crônica, por vezes detalhada e monótona, do desgoverno (quer
ditatorial, quer democrático) que é assaz conhecido em todos os países do
Continente.
Mudados
os nomes e o espaço, nada do que no livro é narrado deixa de ser do conhecimento
dos que acompanham (dentro do possível, pois as notícias dos países
latino-americanos somente chegam a eles, filtrados elas agências noticiosas do
Hemisfério Norte) o que acontece no Continente.
Chivo
(bode), palavra que faz parte do título do romance é o apelido do ditador,
objeto principal da narrativa: Rafael Trujillo que, durante trinta anos,
submeteu Santo Domingo a sua vontade soberana. Era dele o monopólio da
imprensa, do rádio e da televisão; do sal, da cana de açúcar, do cacau, do café;
dos transportes aéreos, do cigarro, da loteria, das companhias de seguro, dos
bancos. Ele é quem, juntamente com Tacho, Caría, Martínez, Ubico, no poema “La
United Fruit Co”, Pablo Neruda chama de mosca, moscas úmidas/ de sangue e marmelada,/ moscas bêbadas que zunem /
sobre os túmulos populares,/ moscas de circo, sábias moscas / entendidas em
tirania.
Esse
poema é parte do Canto General, publicado
em 1950, no México e com edições em vários países, incluindo os Estados Unidos.
Teria o ditador de Santo Domingo dele tomado conhecimento e, então, do epíteto que
lhe fora dado pelo poeta? Porque, de fato, resulta estranho que, nesse caso,
cultuasse os versos de amor do poeta chileno. No entanto, pouco antes do
atentado do dia 30 de maio de 196l que lhe tirou a vida, diz o romance de
Vargas Llosa que recebeu, de presente, a
filha de um antigo colaborador que, caído em desgraça, assim, com tal
oferta, pretendia voltar a ser o homem de confiança que sempre havia sido. Na
longa seqüência em que o romancista, pela voz da vítima, já agora mulher adulta
e residente nos Estados Unidos, faz saber o que aconteceu nesse encontro entre
o velho septuagenário e a adolescente de quatorze anos, o ditador decrépito
simula uma conquista amorosa do que, na verdade, não passa de um estupro. Nada
falta no cenário preparado pela fiel alcoviteira. Há, também, o cálice de xerez
para a donzela e de conhaque para ele, há os boleros de Lucho Gatica e, surpreendentemente,
um poema de Pablo Neruda, recitado no ouvido da menina e do qual, já mulher
feita, ela ainda se lembra de uns versos.
Na
enumeração das atrocidades e dos atos vis de que é feito o romance, um
desconfortável assombro essa seqüência em que versos de Pablo Neruda são
recitados pelo bode/mosca. Certamente, parece improvável que tenha ignorado os versos
de “La Untd Fruit Co” em que seu nome aparece tão pejorativamente e numa afronta que não perdoaria pois, é sabido, que
jamais perdoou a quem quer que fosse. Porém, se o impossível pode acontecer – ou o
ditador não conheceu os versos do Canto
General, ou não se ofendeu o
suficiente para impedir-se de saber, de cor, um poema de amor de Pablo Neruda e recitá-lo, num hábito que, talvez, fosse
conhecido – os poderes do ficcionista lhe permitem abstrair a presença dos versos do
poeta chileno num episódio repugnante em que qualquer aproximação com o ditador significa algo de lamentável e humilhante.
E
haveria razões para que Vargas Llosa a tal desastrosa humilhação condenasse o poeta?
Pablo Neruda que um dia o chamou de extraordinário romancista?

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