domingo, 15 de abril de 2001

Sonho em negro

            Tinha sessenta e oito anos e, aos sete, chegando da Espanha para viver em Arequipa, seu pai a colocou no Convento de Santa Rosa para que ali fosse educada.  Dele, não mais sairia. Anos mais tarde, Madre Superiora, dirigiria o Convento das Carmelitas, com mão de ferro. Abrirá suas portas para receber quem pede asilo, quando do perigo de uma invasão militar na cidade. E, assim, a família de Flora Tristan irá aceitar o refúgio de sua hospitalidade.

            No livro Peregrinações de uma pária (que a Editora Mulheres de Florianópolis e a EDUNISC de Santa Cruz do Sul publicaram no ano passado), em que a francesa Flora Tristan relata a sua viagem ao Peru, esses poucos dias, passados entre os muros do Convento, lhe permitem observar a vida que lá dentro transcorre e que a deixa impressionada até a incredulidade, a partir do momento que ali faz a sua entrada. Eram cerca de sete horas da noite quando a sua família, por uma escrava, se fez anunciar. Na porta do Convento, foram recebidas por algumas religiosas e, seguindo o cerimonial exigido pela etiqueta,  conduzidas à cela da Superiora que se encontrava enferma. Perto dela, nos degraus que davam acesso ao estrado sobre o qual estava o leito, várias religiosas hierarquicamente colocadas. Uma hierarquia que lhes norteia a vida: uma religiosa nobre, despreza a religiosa plebéia; uma religiosa branca, despreza a religiosa de cor; uma religiosa rica, despreza a religiosa pobre. E o contraste, inequívoco, entre a humildade aparente – vestem-se todas com um hábito igual, dormem no mesmo dormitório, comem no mesmo refeitório – e o orgulho mais indomável, acompanha a prática dos votos feitos. As carmelitas se devem ao silêncio e à pobreza. Jamais devem pronunciar outras palavras que não sejam aquelas ditas quando se encontram: Irmã, devemos morrer cuja resposta será sempre  Irmã, a morte é nossa libertação. Todavia, se nunca se deixam ouvir nos pátios, no refeitório, na igreja, no dormitório, naqueles lugares onde crêem poder falar sem violar os votos, elas falam e muito. Igualmente, pelo voto de pobreza, não deveriam ter mais do que uma empregada  a seu serviço. Porém, muitas delas, possuem três ou quatro escravas, vivendo no interior do Convento, além de uma, fora, para comprar o que desejam, levar presentes para os amigos e permitir, nessas idas e vindas, a comunicação com os parentes. No entanto, observa Flora Tristan, embora o Convento de Santa Rosa fosse considerado um dos mais ricos do Peru, as suas religiosas lhe pareceram mais infelizes do que as de outros. Na verdade, a austeridade de seus hábitos, ultrapassa, de muito, a de todos os demais de Arequipa. A Superiora, com extremo rigor, lhes impõe uma vida das mais penosas, continuamente a rezar e a cumprir deveres que a sua exaltação religiosa exige. Uma exaltação que lhe permitiu com fogo no olhar e energia na voz, confessar a Flora Tristan: Ai! Minha querida menina! Agora estou demasiado velha para empreender alguma coisa, meu tempo já se acabou. Mas se tivesse tão somente trinta anos partiria com você. Iria a Madri e ali perderia minha fortuna, meu ilustre nome ou, pela morte de Jesus Cristo que está ali na cruz, juro que restabeleceria a Santa Inquisição.

            Palavras que ecoaram em Arequipa, Peru, no ano de 1836.

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