domingo, 22 de abril de 2001

Sonho em branco

            Fora um alarme falso. A família de Flora Tristan, francesa que, em 1833, veio ao Peru em  busca da herança paterna e que de sua viagem dá testemunho no livro Peregrinações de uma pária, (Florianópolis, Editora Mulheres e EDUNISC de Santa Cruz do Sul, 2000), temendo os desmandos de uma invasão militar, refugia-se num dos conventos de Arequipa, o de Santa Rosa. Um convento onde severas eram as leis e rígidos os seus hábitos. Embora rico e amplo com seus quatro claustros e seus três magníficos jardins, cuidados pelas religiosas, nele, o cotidiano é triste e penoso, submetido à práticas impostas por uma superiora exaltada na sua fé até um fanatismo que  ultrapassa todos os limites da razão.

            Os três dias ali passados cansaram, então, de tal modo as refugiadas que elas preferiram enfrentar os riscos a que estariam expostas fora dele e voltar para suas casas. Ao ultrapassar  a soleira dessa enorme porta de carvalho, aferroada e travada a ferro, todas se puseram a correr de felicidade. Porém, mal chegaram em casa, novo alerta as levou, outra vez, a procurar abrigo e, desta feita, no Convento de Santa Catalina. Embora também de Carmelitas, as normas que o regem  não obrigam à vida comunitária, nem à pobreza, nem ao silêncio. Vestem-se as religiosas com um hábito feito de tecido muito fino, sedoso e de uma brancura radiosa, habitam celas individuais e não estão submissas a infindáveis horas de oração. O tempo que lhes sobra, após aquele, dedicado ao cumprimento das obrigações conventuais, o ocupam a cuidar de sua cela, de seu jardim e a executar trabalhos de agulha. Com muita alegria, receberam as visitantes. Em meio a risos e muitas perguntas – queriam saber como se vestiam as pessoas em Paris, quais suas comidas, se existiam conventos e, principalmente, o que acontecia em relação à música –, ofereciam bolos de toda espécie, frutas, compotas, cremes [..], numa hospitalidade carinhosa e pródiga, em acorde com esse espírito que as fazia educar moças pobres, dar-lhes um dote e, diariamente, distribuir pão e milho e roupa para os pobres.

            A Superiora era boa demais para aborrecê-las ou contrariá-las. Magra e delicada nos seus setenta e dois anos, não parecia ter essa idade a não ser pelas mãos e pelo rosto pois a sua vivacidade se mostrava na conversa, extremamente alegre e brilhante, e no seu enorme gosto pela música. Daí o órgão da igreja do convento ser muito bonito e, como tudo o relacionado com a música, especialmente bem cuidado pelas religiosas. Nos seis dias em que hospedou a francesa  e suas tias e primas fez com que se realizasse cada noite um concerto na sua pequena capela onde três jovens religiosas executaram ao piano, importado de Londres, belas peças de  Rossini. Quando Flora Tristan lhe contou o que dissera a Superiora do Convento de Santa Rosa sobre o seu sonho de restaurar a Santa Inquisição, ela, num levantar de ombros e num sorriso de piedade, respondeu: E eu, minha querida menina, se tivesse  apenas trinta anos, iria com você a Paris ver representar na grande Ópera as sublimes obras primas do imortal Rossini. Uma nota desse homem de gênio é mais útil à saúde moral e física dos povos do que os horrorosos espetáculos dos auto-de-fé da Santa Inquisição o foram para a religião..

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