domingo, 1 de abril de 2001

Flora Tristan no Continente


            Publicada em 1838, pela Arthus Bertrand de Paris, Péregrinations d’une Paria, na sua tradução integral, em português, é oferecida aos leitores pela Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul. Flora Tristan, sua autora, três anos antes publicara um folheto, Nécessité de faire un bon accueil aux femmes étrangères (Necessidade de dar uma boa acolhida às mulheres estrangeiras), fruto de observações e conclusões que a sua viagem ao Peru permitiu elaborar. Filha de uma francesa e de um general peruano, cujo casamento civil não foi realizado, viajou para a América à procura de um reconhecimento da família paterna. Com esse intuito, chega a Arequipa onde, recebida pelos parentes, permanece uns meses. Suficientes para tirar-lhe as ilusões sobre qualquer participação na herança e para permitir que, ao narrar em  Perigrinações de uma pária essa viagem longa e demorada que fez, deixe um testemunho que muitas vezes ultrapassa a experiência de tão difícil travessia do Atlântico e o deparar-se com um preconceituoso relacionamento familiar a negar-lhe os direitos que fora solicitar, para descrever paisagens, alguns aspectos das cidades e os costumes de seus habitantes.

            Assim, ao contemplar Arequipa não pode deixar de se extasiar diante dessas casas, todas brancas, uma multidão de cúpulas reluzindo ao sol, em meio à variedade de tons verdes do vale e do cinza das montanhas[...]. Nem de, mais adiante, deter-se no detalhe das construções (muito sólidas nas belas pedras brancas, térreas, espaçosas, feitas ao redor de pátios) e do mobiliário (pesado, de peças muito grandes). Mais detalhadamente, se referir aos hábitos alimentares cuja rusticidade a faz afirmar que a arte culinária dos habitantes de Arequipa  ainda está na barbárie. E a sua relação dos ingredientes que fazem parte de um dos pratos usuais, não deixa dúvida quanto a isso. Como ela diz, o puchero é, no Peru, uma confusa mistura de alimentos diversos (carnes legumes e frutas): um concerto de vozes desafinadas, de instrumentos discordantes, não revoltaria mais do que a visão, o odor, o sabor desse amálgama bárbaro. A ele, seguem-se outros pratos onde o uso exagerado do pimentão, assim como de muitos temperos, deixa, no seu entender, a boca cauterizada para suportá-los pois o palato deve ter perdido a sensibilidade.

            Essa desarmonia que domina a culinária também está presente nos costumes à mesa: em muitas casas, há apenas um copo para todos. Observa o quanto é de bom tom fazer passar, na ponta do garfo, às pessoas para quem se quer fazer uma gentileza um pedaço de algum alimento tomado de seu prato que, então, circula, derramando molho em torno da mesa, levado pelos escravos.

            São, certamente, notas curiosas sobre um cotidiano que poucos traços deixou para ser conhecido. Juntamente com as que descrevem os rituais religiosos e os espetáculos, completam o perfil da elite com a qual conviveu. Demonstram esse dom de observação que lhe permite retratar o que vê. A ele se acrescenta a rara capacidade de perceber as incongruências de que são feitas as relações entre os homens. Qualidades que, não apenas a tornam apta a fixar o momento em que vive, mas a adiantar-se a sua época na expressão de conceitos até então inusuais e que somente, muitas décadas mais tarde, começarão a serem compreendidos. Daí ser este seu livro uma bela fonte de informações sobre Arequipa e Lima do século XIX, as suas usanças e as suas gentes; sobre as alegrias e dissabores do convívio que a obrigaram os dias de viagem e o encontro com parentes até então desconhecidos; sobre os possíveis judiciosos conceitos a respeito das lutas políticas que se desenrolavam no Peru, das vantagens do uso de papel moeda e das iniqüidades do clero. Evidências de um espírito perspicaz e, sobretudo, independente em meio às amarras e obscurantismos do momento em que viveu.

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