Publicada
em 1838, pela Arthus Bertrand de Paris, Péregrinations
d’une Paria, na sua tradução integral, em português, é oferecida aos
leitores pela Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul.
Flora Tristan, sua autora, três anos antes publicara um folheto, Nécessité de faire un bon accueil aux
femmes étrangères (Necessidade de dar uma boa acolhida às mulheres estrangeiras),
fruto de observações e conclusões que a sua viagem ao Peru permitiu elaborar.
Filha de uma francesa e de um general peruano, cujo casamento civil não foi
realizado, viajou para a América à procura de um reconhecimento da família
paterna. Com esse intuito, chega a Arequipa onde, recebida pelos parentes,
permanece uns meses. Suficientes para tirar-lhe as ilusões sobre qualquer
participação na herança e para permitir que, ao narrar em Perigrinações
de uma pária essa viagem longa e
demorada que fez, deixe um testemunho que muitas vezes ultrapassa a experiência
de tão difícil travessia do Atlântico e o deparar-se com um preconceituoso
relacionamento familiar a negar-lhe os direitos que fora solicitar, para
descrever paisagens, alguns aspectos das cidades e os costumes de seus
habitantes.

Assim,
ao contemplar Arequipa não pode deixar de se extasiar diante dessas casas, todas brancas, uma multidão de cúpulas reluzindo ao sol, em meio à variedade
de tons verdes do vale e do cinza das montanhas[...]. Nem de, mais adiante,
deter-se no detalhe das construções (muito sólidas nas belas pedras brancas,
térreas, espaçosas, feitas ao redor de pátios) e do mobiliário (pesado, de
peças muito grandes). Mais detalhadamente, se referir aos hábitos alimentares
cuja rusticidade a faz afirmar que a arte culinária dos habitantes de
Arequipa ainda está na barbárie. E a sua relação dos ingredientes que fazem
parte de um dos pratos usuais, não deixa dúvida quanto a isso. Como ela diz, o puchero
é, no Peru, uma confusa mistura de alimentos diversos (carnes legumes e
frutas): um concerto de vozes
desafinadas, de instrumentos discordantes, não revoltaria mais do que a visão, o odor, o sabor desse
amálgama bárbaro. A ele, seguem-se outros pratos onde o uso exagerado do
pimentão, assim como de muitos temperos, deixa, no seu entender, a boca cauterizada
para suportá-los pois o palato deve ter
perdido a sensibilidade.
Essa
desarmonia que domina a culinária também está presente nos costumes à mesa: em
muitas casas, há apenas um copo para todos. Observa o quanto é de bom tom fazer passar, na ponta do garfo, às pessoas para quem se quer fazer
uma gentileza um pedaço de algum alimento tomado de seu prato que,
então, circula, derramando molho em torno da mesa, levado pelos escravos.
São,
certamente, notas curiosas sobre um cotidiano que poucos traços deixou para ser
conhecido. Juntamente com as que descrevem os rituais religiosos e os
espetáculos, completam o perfil da elite com a qual conviveu. Demonstram esse
dom de observação que lhe permite retratar o que vê. A ele se acrescenta a rara
capacidade de perceber as incongruências de que são feitas as relações entre os
homens. Qualidades que, não apenas a tornam apta a fixar o momento em que vive,
mas a adiantar-se a sua época na expressão de conceitos até então inusuais e
que somente, muitas décadas mais tarde, começarão a serem compreendidos. Daí
ser este seu livro uma bela fonte de informações sobre Arequipa e Lima do
século XIX, as suas usanças e as suas gentes; sobre as alegrias e dissabores do
convívio que a obrigaram os dias de viagem e o encontro com parentes até então
desconhecidos; sobre os possíveis judiciosos conceitos a respeito das lutas
políticas que se desenrolavam no Peru, das vantagens do uso de papel moeda e das
iniqüidades do clero. Evidências de um espírito perspicaz e, sobretudo,
independente em meio às amarras e obscurantismos do momento em que viveu.
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