Dois
anos antes de morrer, Dyonélio Machado viu realizado um de seus sonhos: ter uma
de suas obras publicada em francês. Pela Maurice Nadeau/Papyrus apareceu,
no ano de 1983, em Paris, L
argent du laitier, tradução de Os
ratos, cuja primeira edição brasileira é da Companhia Editora Nacional, em
1935.
Embora
o título, em francês (O dinheiro do
leiteiro) seja uma invenção da
tradutora, Alice Raillard, o seu trabalho merece os encômios de críticos
(Jorge Coli e Antoine Seel) do Le Monde que,
numa resenha publicada no dia 13 de janeiro de 1984, o consideram excelente. Na
verdade, Alice Raillard não se afasta do texto de Dyonélio Machado. Nos três
primeiros capítulos, a comparação entre a tradução e o original mostram poucos
desvios, que, inclusive, poderiam ser em menor número se não houvesse a
intenção, como tudo leva a crer, de evitar notas explicativas em demasia. Assim,
quando um passageiro do bonde em que viaja Naziazeno, o personagem principal da
obra, a uma pergunta de outro passageiro, responde que pela manhã churrasqueia, o texto francês registra: je mange solidement (eu como
solidamente) o quê pode, é certo, estar próximo da expressão original mas não
exprime, exatamente, o seu significado pois churrasquear, em texto de escritor
gaúcho, significa, sem dúvida, comer churrasco ( carne preparada de uma
determinada forma e típica do Rio Grande do Sul onde, em certos casos e lugares,
é comido também pela manhã). A expressão, portanto, talvez merecesse uma nota
de rodapé haja visto a impossibilidade de tradução. Nos demais casos, o desvio
advém de uma eliminação, de enfraquecimento da expressão, de uma substituição de
categoria gramatical.
Logo no início do romance, Naziazeno teme que, ao voltar para casa, ao meio dia, o
vizinho já saiba pela mulher doacontecido: o leiteiro ter-lhe cobrado, aos
gritos, o leite que devia. No original, Naziazeno imagina que a mulher do vizinho já soube pelas crianças, contou ao
marido, ele é capaz de ficar com uns beiços moles de espanto... Na
tradução, a frase “contou tudo ao marido” é eliminada: la femme a déjà su par les enfants, il est capable de rester bouche
bée de surprise...”. Eliminação
inexplicável, assim como aquela ocorrida no início do terceiro capítulo quando
Naziazeno pousa o olhar nos aspectos
agradáveis da rua cuja tradução ignora o adjetivo e substitui aspectos por spetacle: le regard sur le
spetacle de la rue.
Em
dois casos, ocorre um enfraquecimento da expressão: quando Dyonélio
Machado fala de uma amargura doída
a tradutora registra amertume folle (
amargura louca ) e quando o texto em
português diz todo o seu interesse é
agora, explosivamente para esses cinqüenta
e três mil reis do leiteiro, a frase francesa dilui o advérbio para intensamente (inténsament). Pode acontecer, também, a substituição de um adjetivo
por uma expressão com força de advérbio e conseqüente deslocamento dos termos
da frase, originando um novo sentido.
Assim a voz ralhada do motorneiro,
em francês, aparece como la voix du conducteur en colère (a voz
do motorneiro encolerizado), isto é, voz perde a palavra que a qualifica, e,
assim,ao expressar um sentimento mais forte (encolerizado), passa a qualificar
o sujeito que a emite. Também pode ocorrer a mudança de categoria gramatical de
um dos termos da oração: ergue um pouco a cabeça, embebe-a no ar fresco da
manhã para relève un peu la tête, s’empregne
de l’air frais du matin. Neste
caso, o sujeito da frase em português é o mesmo sujeito do verbo da segunda
oração, cujo objeto direto é o pronome a,
substituindo cabeça. Ela é que se
embebe no ar fresco da manhã. No texto francês, o sujeito dos dois verbos é o
mesmo, mas o segundo verbo funciona como pronominal e, então, é o mesmo sujeito
que levanta a cabeça e se impregna, se embebe do ar fresco da manhã. .
Ou
seja, não foi muito o que Alice Raillard se afastou do original e, quando o
fez, disso não resultou maiores prejuízos. Sobretudo, porque, nestes três
primeiros capítulos cujos textos foram examinados, as intenções ideológicas de
Dyonélio Machado não sofreram percalços. E, assim, profunda e plena de
significados chegou essa obra na França. Quando, ainda, no Brasil mal tinha
sido descoberta.
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