domingo, 2 de janeiro de 2000

Notas de tradução. Os ratos.

           Dois anos antes de morrer, Dyonélio Machado viu realizado um de seus sonhos: ter uma de suas obras publicada em francês. Pela Maurice Nadeau/Papyrus  apareceu,  no ano de 1983, em Paris, L argent du laitier, tradução de Os ratos, cuja primeira edição brasileira é da Companhia Editora Nacional, em 1935.

           Embora o título, em francês (O dinheiro do leiteiro) seja uma invenção da  tradutora, Alice Raillard, o seu trabalho merece os encômios de críticos (Jorge Coli e Antoine Seel) do Le Monde que, numa resenha publicada no dia 13 de janeiro de 1984, o consideram excelente. Na verdade, Alice Raillard não se afasta do texto de Dyonélio Machado. Nos três primeiros capítulos, a comparação entre a tradução e o original mostram poucos desvios, que, inclusive, poderiam ser em menor número se não houvesse a intenção, como tudo leva a crer, de  evitar notas explicativas em demasia. Assim, quando um passageiro do bonde em que viaja Naziazeno, o personagem principal da obra, a uma pergunta de outro passageiro, responde que pela manhã churrasqueia, o texto francês registra: je mange solidement (eu como solidamente) o quê pode, é certo, estar próximo da expressão original mas não exprime, exatamente, o seu significado pois churrasquear, em texto de escritor gaúcho, significa, sem dúvida, comer churrasco ( carne preparada de uma determinada forma e típica do Rio Grande do Sul onde, em certos casos e lugares, é comido também pela manhã). A expressão, portanto, talvez merecesse uma nota de rodapé haja visto a impossibilidade de tradução. Nos demais casos, o desvio advém de uma eliminação, de enfraquecimento da expressão, de uma substituição de categoria gramatical.

          Logo no início  do romance, Naziazeno teme que, ao voltar para casa, ao meio dia, o vizinho já saiba pela mulher doacontecido: o leiteiro ter-lhe cobrado, aos gritos, o leite que devia. No original,  Naziazeno imagina que a mulher do vizinho soube pelas crianças, contou ao marido, ele é capaz de ficar com uns beiços moles de espanto... Na tradução, a frase “contou tudo ao marido” é eliminada: la femme a déjà su par les enfants, il est capable de rester bouche bée de surprise...”. Eliminação inexplicável, assim como aquela ocorrida no início do terceiro capítulo quando Naziazeno pousa o olhar nos aspectos agradáveis da rua cuja tradução ignora o adjetivo e substitui aspectos por spetacle: le regard sur le spetacle de la rue. 

            Em dois casos, ocorre um enfraquecimento da expressão: quando  Dyonélio  Machado fala de uma amargura doída a tradutora registra amertume folle ( amargura louca ) e quando o texto em português diz todo o seu interesse é agora, explosivamente para esses cinqüenta e três mil reis do leiteiro, a frase francesa dilui o advérbio para intensamente (inténsament). Pode acontecer, também, a substituição de um adjetivo por uma expressão com força de advérbio e conseqüente deslocamento dos termos da frase, originando um novo sentido.  Assim a voz ralhada do motorneiro, em francês, aparece como  la voix du conducteur en colère (a voz do motorneiro encolerizado), isto é, voz perde a palavra que a qualifica, e, assim,ao expressar um sentimento mais forte (encolerizado), passa a qualificar o sujeito que a emite. Também pode ocorrer a mudança de categoria gramatical de um dos termos da oração: ergue um pouco a cabeça, embebe-a no ar fresco da manhã para relève un peu la tête, s’empregne de l’air frais du matin. Neste caso, o sujeito da frase em português é o mesmo sujeito do verbo da segunda oração, cujo objeto direto é o pronome a, substituindo cabeça. Ela é que se embebe no ar fresco da manhã. No texto francês, o sujeito dos dois verbos é o mesmo, mas o segundo verbo funciona como pronominal e, então, é o mesmo sujeito que levanta a cabeça e se impregna, se embebe do ar fresco da manhã.  .  

          Ou seja, não foi muito o que Alice Raillard se afastou do original e, quando o fez, disso não resultou maiores prejuízos. Sobretudo, porque, nestes três primeiros capítulos cujos textos foram examinados, as intenções ideológicas de Dyonélio Machado não sofreram percalços. E, assim, profunda e plena de significados chegou essa obra na França. Quando, ainda, no Brasil mal tinha sido descoberta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário