domingo, 30 de janeiro de 2000

Notas de tradução: Cien sonetos de amor. 2

          Gilbert Badia, o tradutor francês de Bertold Brecht, num texto em que trata das dificuldades enfrentadas ao passar para a sua língua natal a obra do dramaturgo alemão (texto publicado pelas Revista Letras, Curitiba, número 24, 1975), lembra o esquema proposto por Arthur Schopenhauer: dois círculos, representando um a obra original e o outro, a tradução. Podem ser mais ou menos sobrepostos e da sua coincidência irá depender a qualidade da tradução. Quanto mais imperfeita, tanto mais os círculos se apresentarão descentrados.

           A tradução de Cien sonetos de amor de Pablo Neruda pelo poeta gaúcho Carlos Nejar, levando em conta o quê parece se constituir uma evidência – ser  um poeta traduzido por outro poeta – se mostra bem longe de alcançar essa coincidência dos círculos que seria, sem dúvida, a meta almejada. Na edição da L & PM Pocket de Porto Alegre, que saiu no ano passado, são muitos os desvios e tanto no que se refere à sintaxe, quanto ao vocabulário. Estes, devidos, principalmente, às divergências léxicas, as diferenças que existem entre certos vocábulos parecidos de ambos os idiomas que levam o tradutor à escolha de uma palavra em português, pela sua  proximidade com o espanhol, ignorando que a semelhança gráfica, prosódica e, sobretudo, semântica não se realiza. Assim, perejil, por exemplo, cujo significado, em espanhol, é salsa. Na tradução, aparece como perrexil. Embora possa ter, segundo o Dicionario Espanhol/Português da Porto Editora, a conotação de salsa, em português perrexil não consta no Novo Dicionário Aurélio ou Caldas Aulete onde aparece como “aquilo que estimula o apetite”, significado impróprio para o verso de Pablo Neruda: cruz verde, perejil de la sombra radiante, luciérnaga a la unidad del cielo condenada. Como o soneto se inicia Oh Cruz del Sur oh trébol de fósforo fragante e o verso em questão, por sua vez,  com a expressão cruz verde, é evidente que a relação do poeta é feita entre o Cruzeiro do Sul (e não Cruz do Sul como quer o tradutor) e a salsa que o vocábulo trébol  (trevo), já usado, torna, ainda mais aceitável na aproximação com a cruz. Isto é, na passagem do verso para o português não foi levado em conta o poema no seu todo o quê também irá acontecer outras vezes. Ao traduzir rachas (vento forte),  por aragem (vento brando) e ráfaga (vento forte e violento) também por aragem houve um abrandamento de sentido  sem que houvesse razão para isso pois a palavra borrascas (tempestades) que antecede rachas  já sugere uma rajada louca e não uma  aragem louca: mi acordeón com borrascas, rachas de lluvia loca por meu acordeão com borrascas, aragem de chuva louca. Igualmente no soneto LXIX, Pablo Neruda se dirige à mulher amada, reconhecendo que ela chegou a sua vida brusca, incitante [...] ráfaga de rosal, trigo del viento. Contexto que exige ser ráfaga traduzido por rajada (vento forte) e não aragem (vento brando) o quê é sugerido pelos adjetivos anteriores e pela expressão trigo do vento, indicando um movimento mais forte. Quando usa a palavra fornada que numa de suas acepcões pode significar o que o forno coze de uma vez em lugar de padaria, o exato correspondente em português da palavra usada por Pablo Neruda, o tradutor se aproxima do sentido do verso original (bienamada bandera de las panaderias) mas foge de um termo que talvez tenha considerado chão. Mas, não levou em consideração  que o poeta chileno  se permite usar as palavras mais simples e usuais para imortalizar as coisas do cotidiano. Por outro lado, se de certa maneira se aproxima do original ao traduzir diminutos por pequenos, diminuindo, no entanto, a força poética da expressão, ao usar bafo (ar exalado dos pulmões) por vapor (fluído aeriforme, produzido pela ação do calor), o tradutor limita a idéia do poema que fala do vapor que se desprende de um boi enterrado no frio e não, apenas, de seu respirar. A opção por apreende (compreende) em lugar de aprende (aprende) igualmente modifica o sentido do verso pois é diferente la tierra aprende el húmedo destino de una copa” de a terra apreende o úmido destino de uma taça. Igualmente curioso é o uso de duas palavras: clave e araña.  Clave é traduzida por clave. Mas, se no verso em espanhol o significado é chave, explicações dos sinais” (y la clave redonda del rápido universo”) em português, além da conotação relacionada com as notas musicais, há apenas uma outra: sinal ortográfico mais conhecido como chave e usar esta conotação se afasta, sem dúvida, do sentido primeiro do verso  original. Quanto à palavra aranha entre as suas conotações está a mesma daquela em português:  animal artrópode aracnídeo e com este sentido aparece no verso de Pablo Neruda. O soneto LXXV se inicia com o verso Esta es la casa, el mar, la bandera. E da casa irá falar, do reencontro com ela depois de ausências em que foi relegada ao silêncio e ao abandono. O primeiro terceto diz, ainda dessa volta à vida que vai acontecendo: Lloró, lloró la casa noche y dia/ gimió con las arañas entreabierta/ se desgranó desde sus ojos negros. Não há dúvida que  as aranhas, como os ratos (ainda que mortos), citados num verso anterior, eram habitantes da casa vazia. O tradutor conserva a palavra com a grafia portuguesa (aranha) e coloca uma nota de rodapé, explicando que aranhas são pequenas carruagens puxadas por cavalos. Conotação da palavra do espanhol do Chile, mas também do português: carruagem leve, de duas rodas, puxadas por um cavalo.

          Assim, entre os muitos desvios que ora apenas diluem a força da expressão poética, ora lhe conferem outro sentido, a excelência da tradução se perde nos meandros da displicência. Mas, dizem os sábios, nunca termina o trabalho de traduzir uma obra e a humildade de recomeçar, convém aos tradutores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário