Gilbert
Badia, o tradutor francês de Bertold Brecht, num texto em que trata das
dificuldades enfrentadas ao passar para a sua língua natal a obra do dramaturgo
alemão (texto publicado pelas Revista
Letras, Curitiba, número 24, 1975), lembra o esquema proposto por Arthur
Schopenhauer: dois círculos, representando um a obra original e o outro, a
tradução. Podem ser mais ou menos sobrepostos e da sua coincidência irá
depender a qualidade da tradução. Quanto mais imperfeita, tanto mais os
círculos se apresentarão descentrados.
A
tradução de Cien sonetos de amor de
Pablo Neruda pelo poeta gaúcho Carlos Nejar, levando em conta o quê parece se
constituir uma evidência – ser um poeta
traduzido por outro poeta – se mostra bem longe de alcançar essa coincidência
dos círculos que seria, sem dúvida, a meta almejada. Na edição da L & PM
Pocket de Porto Alegre, que saiu no ano passado, são muitos os desvios e tanto
no que se refere à sintaxe, quanto ao vocabulário. Estes, devidos,
principalmente, às divergências léxicas, as
diferenças que existem entre certos vocábulos parecidos de ambos os idiomas que levam o tradutor à escolha de uma
palavra em português, pela sua
proximidade com o espanhol, ignorando que a semelhança gráfica,
prosódica e, sobretudo, semântica não se realiza. Assim, perejil, por exemplo, cujo significado, em espanhol, é salsa. Na
tradução, aparece como perrexil.
Embora possa ter, segundo o Dicionario
Espanhol/Português da Porto Editora, a conotação de salsa, em português perrexil
não consta no Novo Dicionário Aurélio ou Caldas Aulete onde aparece como “aquilo
que estimula o apetite”, significado impróprio para o verso de Pablo Neruda: cruz verde, perejil de la sombra radiante,
luciérnaga a la unidad del cielo
condenada. Como o soneto se inicia Oh
Cruz del Sur oh trébol de fósforo
fragante e o verso em questão, por sua vez, com a expressão cruz verde, é evidente que a relação do poeta é feita entre o
Cruzeiro do Sul (e não Cruz do Sul como quer o tradutor) e a salsa que o
vocábulo trébol (trevo), já usado, torna, ainda mais aceitável
na aproximação com a cruz. Isto é, na passagem do verso para o português não
foi levado em conta o poema no seu todo o quê também irá acontecer outras
vezes. Ao traduzir rachas (vento
forte), por aragem (vento brando) e ráfaga
(vento forte e violento) também por aragem
houve um abrandamento de sentido sem que houvesse razão para isso pois a
palavra borrascas (tempestades) que
antecede rachas já sugere uma rajada louca e não uma aragem louca: mi acordeón com borrascas, rachas de lluvia loca por meu acordeão com
borrascas, aragem de chuva louca. Igualmente no soneto LXIX, Pablo Neruda
se dirige à mulher amada, reconhecendo que ela chegou a sua vida brusca, incitante [...] ráfaga de rosal, trigo del viento. Contexto que exige ser ráfaga traduzido por rajada (vento forte) e não aragem (vento brando) o quê é sugerido
pelos adjetivos anteriores e pela expressão trigo
do vento, indicando um movimento mais forte. Quando usa a palavra fornada que numa de suas acepcões pode significar o que o forno coze de uma vez em lugar de padaria, o exato correspondente em português da palavra usada por Pablo
Neruda, o tradutor se aproxima do sentido do verso original (bienamada bandera de las panaderias) mas
foge de um termo que talvez tenha considerado chão. Mas, não levou em
consideração que o poeta chileno se permite usar as palavras mais simples e usuais
para imortalizar as coisas do cotidiano. Por outro lado, se de certa maneira se
aproxima do original ao traduzir diminutos
por pequenos, diminuindo, no entanto,
a força poética da expressão, ao usar bafo
(ar exalado dos pulmões) por vapor (fluído
aeriforme, produzido pela ação do calor), o tradutor limita a idéia do poema
que fala do vapor que se desprende de um boi enterrado no frio e não, apenas,
de seu respirar. A opção por apreende
(compreende) em lugar de aprende
(aprende) igualmente modifica o sentido do verso pois é diferente la tierra aprende el húmedo destino de una
copa” de a terra apreende o úmido destino de uma taça. Igualmente
curioso é o uso de duas palavras: clave
e araña. Clave
é traduzida por clave. Mas, se no
verso em espanhol o significado é chave,
explicações dos sinais” (y la clave
redonda del rápido universo”) em português, além da conotação relacionada
com as notas musicais, há apenas uma outra: sinal ortográfico mais conhecido
como chave e usar esta conotação se afasta, sem dúvida, do sentido primeiro do
verso original. Quanto à palavra aranha entre as suas conotações está a
mesma daquela em português: animal artrópode
aracnídeo e com este sentido aparece no verso de Pablo Neruda. O soneto LXXV se inicia com o verso Esta es la casa, el mar, la bandera. E da casa irá falar, do reencontro com
ela depois de ausências em que foi relegada ao silêncio e ao abandono. O
primeiro terceto diz, ainda dessa volta à vida que vai acontecendo: Lloró, lloró la casa noche y dia/ gimió con
las arañas entreabierta/ se desgranó
desde sus ojos negros. Não há dúvida
que as aranhas, como os ratos (ainda que
mortos), citados num verso anterior, eram habitantes da casa vazia. O tradutor
conserva a palavra com a grafia portuguesa (aranha) e coloca uma nota de
rodapé, explicando que aranhas são pequenas
carruagens puxadas por cavalos.
Conotação da palavra do espanhol do Chile, mas também do português: carruagem leve, de duas rodas, puxadas por
um cavalo.
Assim, entre os muitos
desvios que ora apenas diluem a força da expressão poética, ora lhe conferem
outro sentido, a excelência da tradução se perde nos meandros da displicência.
Mas, dizem os sábios, nunca termina o trabalho de traduzir uma obra e a
humildade de recomeçar, convém aos tradutores.
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