domingo, 16 de janeiro de 2000

Para o ano 2000


                                                                Os gatos, as adolescentes...
                                               Os gatos, as adolescentes, os álamos
                                               compensam a feia rigidez do mundo
                                               porque tudo quanto é mecânico é rígido,
                                               mesmo que seja um auto na mais fittipaldiana disparada.
                                               Ah! Não esqueçam também o vôo de uma ave
- se ainda sobrou alguma.
 “Caderno H”. Mário Quintana. 

          No dia 22 de março de 1975, o “Caderno de Sábado” do Correio do Povo de Porto Alegre, publicava sob a rubrica “Do Caderno H”, um texto de Mário Quintana. Um breve texto que se termina com um amistoso e cordial conselho: “Deixemos, pois, o Ano Dois Mil chegar, imperceptivelmente como um ano qualquer”. As palavras que o antecedem, explicam essa suprema expressão de bom senso de alguém, cuja visão de mundo difere, quase sempre, daquela que é comum à maioria dos que o rodeiam ou à maioria, simplesmente.  Primeiro, Mário Quintana se admira “de toda essa preocupação com o ano 2000”. E, conclui que deve ser ela devida à antiga mania ou superstição do número redondo. Lembra que nos idos tempos que antecederam ao ano Mil, já alguns pretendiam que seria o fim do mundo. Cuidado não descartado nesta passagem para o ano 2000 em que surgiram cruéis dúvidas sobre eventual comportamento dos computadores responsáveis pelos arsenais da grande potência que hoje controla, senão a todos, pelo menos a quase todos os viventes deste pobre Mundo. Um mundo que se diria exangue, falto de idéias e de ações que tivessem como escolha primeira e pão e água e ar para todos, mas que ninguém deseja que desapareça.

          Há vinte e cinco anos atrás, talvez não tivessem, ainda, chegado ao Brasil essas preocupações de um fim de mundo precoce, originado de uma imprevista ingenuidade das  máquinas mas, certamente, grassariam as inquietações que sempre se apoderaram dos humanos pois o Poeta comenta que uma das que chama de “ incansáveis entrevistadoras” foi  lhe perguntar se estamos “no fim de uma era”. Estranha ser assim questionado, pois reconhece não ser nenhum Nostradamus. Todavia, não foge da pergunta e enuncia um vaticínio: “nunca se saberá, nunca se notará, nunca se verá o fim de coisa nenhuma”. Palavras que, dir-se-ia, contradizem a melancólica asserção, contida nos dois últimos versos de um poema, “Os gatos, as adolescentes...”, publicado uma semana antes. Neles, Mário Quintana questiona  – não terão sido todas dizimadas? – a existência das aves. Seu verso “Se ainda sobrou alguma” é  uma incerteza em prosaica e angustiada expressão de medo. Medo que se torne, efetivamente real  o que ironiza como passível de acontecer num mundo de feiura e rigidez. Assim, ao contrapor a um mundo sem beleza e sem nuanças “os gatos, as adolescentes, os álamos”, se dirige a eventuais interlocutores para sugerir que “não esqueçam também o vôo de uma ave”. Uma recomendação que se insinua despretenciosamente coloquial para se adensar na sugestão poética expressa nas palavras “vôo de uma ave” que a ressalva do verso final “se ainda sobrou alguma”, torna uma ameaçadora profecia.

           Assim, se o rito da passagem de um ano para o outro pode ser, impunemente ignorado, resulta inevitável conhecer os perigos que se avizinham ou que se instalam ou que se efetivam nesta busca pela matéria que torna os humanos alheios a tudo o que da matéria não faça parte. Sobretudo, porque apenas uns poucos são capazes de resistir à alienação e ao contínuo e renovado convite de submeter-se à máquina.

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