domingo, 9 de janeiro de 2000

O encontro.

          Escrito numa semana de 1954, Eloy só iria ser publicado cinco anos depois quando foi finalista do Prêmio Biblioteca Breve da editora espanhola Seix Barral. Logo, seguir-se-iam as edições da Argentina, do Chile e de Cuba e as várias traduções que fizeram desse romance de Carlos Droguett, a mais conhecida de suas obras. Que, no entanto – e as razões são assaz conhecidas –, só cruzou as fronteiras do Brasil em 1981, numa edição da CODECRI, do Rio de Janeiro que, tudo indica, tornou mais ingrato o seu destino em Língua Portuguesa haja visto os seus precários serviços de distribuição. Daí, o seu aparecimento no Brasil, a não ser pela resenha, assinada por Bella Jozef, no jornal O Globo (19-4-1982), ter passado, lamentavelmente, despercebido.
           Porém Eloy é uma obra que resiste ao tempo e os cinqüenta anos que transcorreram desde a sua primeira edição em Barcelona não lhe esmaeceram as qualidades, seja quanto à estrutura romanesca, seja quanto aos recursos estilísticos ou às farpas que, dirigidas a uma sociedade dividida em classes, se deixam, vislumbrar. Uma breve aproximação a dois pequenos fragmentos do romance é suficiente para mostrar o quanto Carlos Droguett domina a arte de narrar. São eles o 18 e o 23, segundo a numeração que deles faz Teobaldo Noriega em  La novelística de Carlos Droguett: aventura y compromiso (Madrid, Pliegos, 1983). Definidos os dois planos (o do presente em que acontece o cerco a Eloy, um perseguido pela polícia e o do passado em que ele, acurralado, evoca situações já vividas) da narrativa, o estudioso da obra de Carlos Droguett pode constatar que ela se constitui de 52 fragmentos, ora entrelaçados, ora separados por  alguns outros, que não obedecem a uma ordem cronológica ou espacial. Daí o episódio do fragmento 18 ter continuidade no fragmento 23. Ele se inscreve no que Teobaldo Noriega chama de plano do evocado e se inicia, precisamente, com a pergunta tu te lembras, Eloy ? que o personagem faz a si mesmo, voltando-se para essa noite, vivida oito anos antes quando conheceu a Rosa: acredita-se perseguido por um carro e quer fugir, no intuito de se proteger num rancho de beira de estrada. Percebe, escondido atrás de uma árvore que também o carro abandonara a estrada e havia parado com as luzes apagadas. Escuta risos e vozes masculinas. Logo, um grito de mulher, uma bofetada, choro e o seu desfalecer junto do automóvel. Eloy entende o que está acontecendo e, tomado de raiva, dispara contra aquele que descera do carro e, logo, também, no que tentara fugir e que ele perseguira entre as árvores. Já ao amanhecer, acorda do sono profundo em que caíra e desperta a mulher que deitara no banco traseiro do carro. Dá-se conta que logo iria clarear o dia, que precisavam sair dali. Também, que a mulher que protegera, era muito jovem e que  lhe caberia crescer um par de anos a seu lado. Tomam um ônibus para a cidade, viajam encolhidos e, ao chegar, depois de comer, ele a segura pelo braço para se aproximar . Termina, assim, o fragmento 18 e no 23 o relato continua: Eloy a leva  para um hotel e irá perceber que é muito pequena e esmirrada e que tem os lábios frios. Somente entremeados a outros fragmentos, as informações de que se chama Rosa e será a sua companheira e mãe de seu filho.

          Como em todos os outros, sobressai nesse fragmento, o que resulta uma constante do estilo de Carlos Droguett: o audacioso uso do adjetivo. No fragmento 18 aparecem em número de dois ou três para classificar um substantivo e, sempre, conferindo qualidades humanas ao objeto ou ao elemento da natureza a que se refere. Assim, o chapéu caído na água navega, fanfarrão e triste. Assim, corre a água rápida, ensimesmada e eterna, e são as estrelas insignificantes e sujas, as flores embriagadas e em festa, os álamos altos e magros e silenciosos. Igualmente, próprio de seu texto, o registro das  diferenças que regem o destino dos homens no Continente. No fragmento 18, o relato da tentativa de curra mostra moços ricos cuja presença, diluída em rápidas expressões – carro cheio de gargalhadas, de roupa preta e fina, de peitilhos brancos e luvas alvas e flores cheirando a uísque e a amanhecer, de certa forma repetidas como que a esmo: guri milionário, cheirava a perfume e a uísque, assustado elegante, brilhava o peitilho e as luvas, umas luvas brancas- e a mulher chorando devagarinho, se queixando. Depois, o riso, a bofetada na mulher, o cigarro fumado devagar, em expectativa viciosa, as intenções insolentes do olhar, a voz alta, repartindo ordens, se opondo ao choro e ao desamparo feminino.

          Quadro de maldades a se esboçarem, interrompidas pelas balas de Eloy que, insurgindo-se contra a injustiça, mais uma vez, busca, no revólver, a sua força. Dela, não está isenta a ternura quando toma a si o papel de protetor  da mulher que apenas conhecera, consolidando inesperados laços afetivos. E, Carlos Droguett, na perfeição de seu arquitetado e rico narrar, faz  acontecer entre os dois seres marginais, nesse fragmento 18, marcado, sobretudo, pela violência, um surpreendente momento de lirismo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário