Escrito
numa semana de 1954, Eloy só iria
ser publicado cinco anos depois quando foi finalista do Prêmio Biblioteca Breve
da editora espanhola Seix Barral. Logo, seguir-se-iam as edições da Argentina,
do Chile e de Cuba e as várias traduções que fizeram desse romance de Carlos
Droguett, a mais conhecida de suas obras. Que, no entanto – e as razões são
assaz conhecidas –, só cruzou as fronteiras do Brasil em 1981, numa edição da
CODECRI, do Rio de Janeiro que, tudo indica, tornou mais ingrato o seu destino em
Língua Portuguesa haja visto os seus precários serviços de distribuição. Daí, o
seu aparecimento no Brasil, a não ser pela resenha, assinada por Bella Jozef,
no jornal O Globo (19-4-1982), ter
passado, lamentavelmente, despercebido.
Porém
Eloy é uma obra que resiste ao tempo
e os cinqüenta anos que transcorreram desde a sua primeira edição em Barcelona
não lhe esmaeceram as qualidades, seja quanto à estrutura romanesca, seja
quanto aos recursos estilísticos ou às farpas que, dirigidas a uma sociedade dividida
em classes, se deixam, vislumbrar. Uma breve aproximação a dois pequenos
fragmentos do romance é suficiente para mostrar o quanto Carlos Droguett domina
a arte de narrar. São eles o 18 e o 23, segundo a numeração que deles faz
Teobaldo Noriega em La novelística de Carlos Droguett: aventura y
compromiso (Madrid, Pliegos, 1983). Definidos os dois planos (o do presente
em que acontece o cerco a Eloy, um perseguido pela polícia e o do passado em
que ele, acurralado, evoca situações já vividas) da narrativa, o estudioso da
obra de Carlos Droguett pode constatar que ela se constitui de 52 fragmentos,
ora entrelaçados, ora separados por
alguns outros, que não obedecem a uma ordem cronológica ou espacial. Daí
o episódio do fragmento 18 ter continuidade no fragmento 23. Ele se inscreve no
que Teobaldo Noriega chama de plano do
evocado e se inicia, precisamente, com a pergunta tu te lembras, Eloy ? que o personagem faz a si mesmo, voltando-se
para essa noite, vivida oito anos antes quando conheceu a Rosa: acredita-se
perseguido por um carro e quer fugir, no intuito de se proteger num rancho de
beira de estrada. Percebe, escondido atrás de uma árvore que também o carro
abandonara a estrada e havia parado com as luzes apagadas. Escuta risos e vozes
masculinas. Logo, um grito de mulher, uma bofetada, choro e o seu desfalecer junto
do automóvel. Eloy entende o que está acontecendo e, tomado de raiva, dispara
contra aquele que descera do carro e, logo, também, no que tentara fugir e que
ele perseguira entre as árvores. Já ao amanhecer, acorda do sono profundo em que
caíra e desperta a mulher que deitara no banco traseiro do carro. Dá-se conta
que logo iria clarear o dia, que precisavam sair dali. Também, que a mulher que
protegera, era muito jovem e que lhe caberia crescer um par de anos a seu lado.
Tomam um ônibus para a cidade, viajam encolhidos e, ao chegar, depois de comer,
ele a segura pelo braço para se aproximar . Termina, assim, o fragmento 18 e no
23 o relato continua: Eloy a leva para
um hotel e irá perceber que é muito
pequena e esmirrada e que tem os lábios frios. Somente entremeados a outros
fragmentos, as informações de que se chama Rosa e será a sua companheira e mãe
de seu filho.
Como
em todos os outros, sobressai nesse fragmento, o que resulta uma constante do
estilo de Carlos Droguett: o audacioso uso do adjetivo. No fragmento 18 aparecem
em número de dois ou três para classificar um substantivo e, sempre, conferindo
qualidades humanas ao objeto ou ao elemento da natureza a que se refere. Assim,
o chapéu caído na água navega, fanfarrão e triste. Assim, corre a água rápida, ensimesmada e eterna, e são as
estrelas insignificantes e sujas, as flores embriagadas e em festa, os álamos
altos e magros e silenciosos. Igualmente, próprio de seu texto, o registro das diferenças que regem o destino dos homens no
Continente. No fragmento 18, o relato da tentativa de curra mostra moços ricos
cuja presença, diluída em rápidas expressões – carro cheio de gargalhadas, de roupa preta e fina, de peitilhos brancos
e luvas alvas e flores cheirando a uísque e a amanhecer, de certa forma
repetidas como que a esmo: guri
milionário, cheirava a perfume e a
uísque, assustado elegante, brilhava o peitilho e as luvas, umas
luvas brancas- e a mulher chorando devagarinho, se queixando. Depois, o
riso, a bofetada na mulher, o cigarro fumado devagar, em expectativa viciosa,
as intenções insolentes do olhar, a voz
alta, repartindo ordens, se opondo ao choro e ao desamparo feminino.
Quadro
de maldades a se esboçarem, interrompidas pelas balas de Eloy que, insurgindo-se
contra a injustiça, mais uma vez, busca, no revólver, a sua força. Dela, não
está isenta a ternura quando toma a si o papel de protetor da mulher que apenas conhecera, consolidando
inesperados laços afetivos. E, Carlos Droguett, na perfeição de seu arquitetado
e rico narrar, faz acontecer entre os
dois seres marginais, nesse fragmento 18, marcado, sobretudo, pela violência,
um surpreendente momento de lirismo.
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