domingo, 23 de janeiro de 2000

Notas de tradução:Cien sonetos de amor. 1

          Embora Prêmio Nobel 1971, Pablo Neruda foi muito pouco traduzido no Brasil. Certamente, para isso, contribuiu a sua postura ideológica que jamais esteve em acorde com aquela dos que regiam os destinos do Continente. Mas, também, essa opção constante dos brasileiros em considerar digno de atenção somente o que é produzido no Hemisfério Norte, mais precisamente, ao norte do Rio Bravo.

          Cien sonetos de amor, publicado em 1965 pela Losada de Buenos Aires, só apareceu, no Brasil, em 1999, número 19 da coleção L & PM  Pocket de Porto Alegre. Como não consta nessa edição qual o volume que lhe serviu de fonte, não é possível saber se as diferenças tipográficas (nomes dos meses janeiro e junho, grafadas com maiúsculas no original e com minúsculas na tradução e a palavra sur grafada com minúscula no original e com maiúscula na tradução) ou as mudanças nas estrofes do soneto LXIII (no original um terceto, um quarteto, dois tercetos e na tradução, um quarteto, um terceto, um quarteto, um terceto ), se relacionadas com o texto da edição Losada, 1969, representam ou não, um desvio do texto original, texto que todo editor tem o dever de respeitar no mais mínimo de seus detalhes. Inegáveis, no entanto, são os desvios ocorridos a nível do vocabulário, muitos dos quais, verdadeiramente, inaceitáveis, sobretudo se for levado em consideração o autor da tradução, neste caso, o respeitado poeta gaúcho Carlos Nejar.

           Assim, o topônimo, Chillán, cidade em cujos arredores são cultivados trigais e vinhedos, aparece, no texto da L & PM como Chile. Dar-se-ia o caso de o tradutor acreditar que a palavra tivesse sido grafada erroneamente ou que, se conservada, pudesse dificultar a compreensão do poema? Ou se trata, apenas, de uma simplória inadvertência? Como as várias outras, presentes ao longo do livro: presença de  palavras em português cujo significado é bem diferente daquele das palavras usadas pelo poeta que terá, então, deturpado o significado de seu verso. Exemplos disso:, humo (fumaça), traduzido por fumo; ratas (ratos) por momentos; escoba (vassoura) por escova; oso (urso) por osso; acuerda (lembra) por acorda; matorral (mato) por cipoal; volvemos (tornamos) por revolvemos e chascona (desgrenhada) por brejeira. Fica evidente que a semelhança dos termos nos dois idiomas, em alguns casos, norteou a escolha do tradutor. Outros, porém, são inexplicáveis: as palavras oso e huesos, por exemplo. A primeira foi traduzida por osso, deixando, evidentemente, o verso sem sentido pois a expressão “paciencia de oso” de Pablo Neruda (paciência de urso) passou a ser, em português, “paciência de osso”. A segunda, hueso (osso) foi, num outro poema, devidamente traduzido por osso. Também matorral, traduzido, uma vez por mato e outra, aleatoriamente, por cipoal.  E, humo, traduzido, num poema por fumaça e noutro, erradamente por fumo. E traduzir ratas por momentos deve ser devido à contaminação com o significado de rato, termo cujo significado, em português, é momento. Do verso original do soneto LXXV  las ratas muertas, o significado se perdeu para, em português, significar “momentos mortos”. Deveras  importante é o desvio que envolve a palavra chascona. Termo popular chileno, significa pessoa com uma cabeleira abundante, usada, sistematicamente de forma emaranhada, termo que, inclusive, foi usada pelo poeta para nomear a casa em Santiago onde se encontrava com Matilde quando, ainda, não se havia separado de sua mulher Delia del Carril. No soneto XIV, cujo primeiro verso é  Me falta tiempo para celebrar tus cabellos, o termo chascona  (seguido de outro, enmarañada que tem o mesmo significado) recebe, como tradução, a palavra brejeira, que, não somente não significa o que foi dito pelo poeta como se refere a uma qualidade ou defeito (entre suas várias acepções: travesso, garoto, patusco, brincalhão, malicioso, lúbrico...) que não está em sintonia com o soneto, cuja intenção é celebrar o cabelo da amada. E, não apenas, o primeiro verso o diz como os demais onde Pablo Neruda usa, também, a palavra pelo (cabeloque o tradutor, sistematicamente, traduz por pelo nas inúmeras vezes em que aparece. Embora seja um possível significado para a expressão espanhola, nos versos em que o poeta celebra o físico da amada, parece evidente  estar a referir-se a seus cabelos – mi corazón conoce las puertas de tu pelo, hasta que el sol sube a la torre de tu pelo, tienes enredadera y estrellas en el pelo, para que pase mi sombra por tu pelo – e que ao tradutor cabe optar por esta acepção e não pela outra que diminui, sem dúvida, a expressividade poética do poema. Uma expressividade que, certamente e de todas as maneiras, ainda que em condições ideais, irremediavelmente, se perde pelo simples fato de ser transformada em outro universo lingüístico. No entanto, poderia existir uma aproximação mais perfeita no caminho de um idioma para o outro se fosse possível evitar desvios, devidos unicamente ao despreparo ou à indiferença que rege o autor das traduções, num país em que o respeito pela produção intelectual sempre foi e continua sendo (evidentemente não se incluem aí as sempre honrosas exceções) algo de inexistente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário