Mal don foi publicado em 1973 e está
entre os romances de Silvina Bulrich que se propõem registrar aspectos da
realidade argentina. Seu personagem narrador, Diego Bermúdez é seqüestrado e
morto por um grupo de subversivos. Enquanto esteve prisioneiro escreveu suas
memórias e o relato se inicia com as mais antigas lembranças: era pequeno e
vivia num povoado à beira-mar que, nos três meses de verão, se enchia de
veranistas. Filho de jardineiro, idealizava a vida dos que podiam ter duas
casas e que pareciam viver continuamente em festa, uma raça estável, algo como
ser Príncipe ou Rei. E bem cedo, se deu conta que para eles era um ninguém:
o neto da caseira. E, assim, à margem desses efêmeros passantes de verão, ele
cresceu, querendo possuir o que os outros, aqueles que, no seu entender, tudo
possuíam, lhe negavam: uma identidade. Em sua busca ele estuda e se faz
advogado e casa com rica herdeira e se torna, como vice-presidente do banco que
pertencia ao sogro, seu braço direito. Finalmente, ele existe. Tem mulher
bonita, filhos cuidados, casa com piscina, carro último tipo e até um alto
preço quando passa à condição de seqüestrado. Apenas, ignora não ser resgatável
pois, para os que o mantém preso, não tem valor. Só a vida para pagar a
traição. A traição de ter renegado sua origem e passado para o outro lado.
Seus escritos terminam quando é
baleado e a voz de um narrador assume o relato para não deixar dúvidas de que
foi morto e para refletir sobre o jogo da vida onde os deuses que manejam nossos
fios tem mãos travessas de titereiros. E para lembrar que nessa estranha América do Sul, ao menor descuido as fortunas se derretem como manteiga
no sol enquanto outras se acumulam
como as folhas secas depois de um vendaval. Daí uma permeabilidade das
classes que só os países de aluvião
permitem.
Diego Bermúdez alcança o que
pretende ao abandonar a pequena cidade praieira e intentar a escalada na
direção do sucesso em Buenos Aires. Na fuga da pobreza, que se mostra patética,
os jogos do poder, nem sempre edificantes. E no seu caminho surge o percalço.
Esse castigo que lhe é dado por trair os seus – e o pai jardineiro, e a avó
caseira, e os amigos pobres a quem prometera, em criança, defender – ao aceitar
a riqueza. E o móbil das ações humanas matizado por hipocrisias, mentiras,
vícios, ambições, desconcerta, sem emocionar, nessa história de conquistas tênues que Silvina
Bulrich apresenta como um testemunho de práticas muito usuais, dentre os novos
ricos do Continente que primam por
esquecer as origens e por assumir outras verdades e outros ritos.

Nenhum comentário:
Postar um comentário