domingo, 31 de janeiro de 1999

Traição

         Mal don foi publicado em 1973 e está entre os romances de Silvina Bulrich que se propõem registrar aspectos da realidade argentina. Seu personagem narrador, Diego Bermúdez é seqüestrado e morto por um grupo de subversivos. Enquanto esteve prisioneiro escreveu suas memórias e o relato se inicia com as mais antigas lembranças: era pequeno e vivia num povoado à beira-mar que, nos três meses de verão, se enchia de veranistas. Filho de jardineiro, idealizava a vida dos que podiam ter duas casas e que pareciam viver continuamente em festa, uma raça estável, algo como ser Príncipe ou Rei. E bem cedo, se deu conta que para eles era um ninguém: o neto da caseira. E, assim, à margem desses efêmeros passantes de verão, ele cresceu, querendo possuir o que os outros, aqueles que, no seu entender, tudo possuíam, lhe negavam: uma identidade. Em sua busca ele estuda e se faz advogado e casa com rica herdeira e se torna, como vice-presidente do banco que pertencia ao sogro, seu braço direito. Finalmente, ele existe. Tem mulher bonita, filhos cuidados, casa com piscina, carro último tipo e até um alto preço quando passa à condição de seqüestrado. Apenas, ignora não ser resgatável pois, para os que o mantém preso, não tem valor. Só a vida para pagar a traição. A traição de ter renegado sua origem e passado para o outro lado.
          Seus escritos terminam quando é baleado e a voz de um narrador assume o relato para não deixar dúvidas de que foi morto e para refletir sobre o jogo da vida onde os deuses que manejam nossos fios tem mãos travessas de titereiros. E para lembrar que nessa estranha América do Sul, ao menor descuido as fortunas se derretem como manteiga no sol enquanto outras se acumulam como as folhas secas depois de um vendaval. Daí uma permeabilidade das classes que só os países de aluvião permitem. 
           Diego Bermúdez alcança o que pretende ao abandonar a pequena cidade praieira e intentar a escalada na direção do sucesso em Buenos Aires. Na fuga da pobreza, que se mostra patética, os jogos do poder, nem sempre edificantes. E no seu caminho surge o percalço. Esse castigo que lhe é dado por trair os seus – e o pai jardineiro, e a avó caseira, e os amigos pobres a quem prometera, em criança, defender – ao aceitar a riqueza. E o móbil das ações humanas matizado por hipocrisias, mentiras, vícios, ambições, desconcerta, sem emocionar, nessa  história de conquistas tênues que Silvina Bulrich apresenta como um testemunho de práticas muito usuais, dentre os novos ricos do Continente que primam  por esquecer as origens e por assumir outras verdades e outros ritos.

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