domingo, 24 de janeiro de 1999

As inquietações

           Em novembro último, fez trinta anos que foi publicado pela primeira vez. É um livro morno, relato dos seis meses que a narradora passou sozinha numa praia distante e deserta.Nele aparecem datas que definem o gênero, um diário, e a passagem do tempo, introduzindo textos mais ou menos longos: o dia a dia transcorrido na busca de si mesma e uma ou outra lembrança do passado. Nada de grandes paixões ou de grandes sentimentos.  Viver sem espanto da mulher cuja classe social está isenta de privações. Assim, o pequeno drama individual da narradora – a idade que chega, a escolha de um vestido para a festa, a incerteza na educação das filhas, o repúdio de um galanteador atrevido – é motivo para reflexões sobre os desajustes que a unem às filhas, aos homens, ao grupo social que freqüenta.

            As filhas lhe cobram carinho, atenções que, em determinado momento, estiveram ausentes porque ela tinha uma festa que, então, era prioritária; ou lhe reprovam uma severidade que achavam inoportuna. Ou, discutem verdades cambiantes: para ela era importante que as contas fossem mantidas em dia. Para as filhas só é aconselhável fazer dívidas o que significa uma possibilidade de enriquecer. Entre acusações, desentendimentos, agressões ela acaba por concluir que os filhos não podem assumir sua própria personalidade sem arranhar os pais.

              Sobre os homens, é um lembrar de felicidades já idas, de encontros que se perdem, de um feminino diluído em dúvidas. Lúcidas e, talvez, irônicas, as palavras sobre a classe social a que pertence, mais especificamente, sobre os valores que lhe regem os atos: o posto alcançado por meio de influências, a frivolidade no trato, a importância dada às aparências, o gosto pelo agrupamento, os corteses hábitos sociais, a tolerância com o convívio medíocre, a corrida em prol do dinheiro.

               Entremeadas, as melancólicas referências à condição feminina quando pensa que  nascer homem já é receita para vencer na vida, que é, na vida, já ter um lugar assegurado, que tomar decisões heróicas não é da competência das mulheres. Na verdade, são idéias que estão em acorde com a visão de mundo tradicional e conservadora que nutre o micro universo em que se move a narradora. Dela, não se conhece o nome, apenas essa idade, quarenta e nove anos, que a inquieta e deprime e a leva a procurar vencer a solidão desejada. E isto faz de Mañana digo basta (Buenos Aires, Sudamericana) um livro de confissão. E reflexo de uma classe convicta de ser merecedora de benesses – e o luxo e o conforto e o divertimento – e completamente estranha ao que sucede a sua volta.

                Silvina Bulrich,  romancista, ensaísta e tradutora argentina escreve para os seus. Até porque, analfabetos e famintos não tem acesso aos livros.

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