O mesmo sistema de poder que fabrica a pobreza é o que declara a guerra sem
quartel aos desesperados que origina.
Eduardo Galeano.
ignora. Porque tais informações somente se encontram em
alguns escritos que ficam presos em bibliotecas ou em livrarias e, é sabido,
são reservados para poucos. No entanto, deveriam ser do conhecimento de todos,
tudo aquilo que diz Eduardo Galeano no seu último livro Patas arriba. La escuela del
mundo al revés. Publicado no fim de 1998, em Montevidéu, nele são expostos
os absurdos e as atrocidades que regem o mundo de hoje. Breves textos, introduzidos por um
título-tema e o mapa da fome, da exploração, do analfabetismo, da miséria, da
doença, do medo, da perseguição, vai se delineando. Nas letras de música, nas
pichações feitas nos muros, nas palavras
que a entrevista recolhe, nos dados fornecidos pelas notícias de jornal, nas
informações contidas nos livros.
Embora
exemplos e dados e números se refiram a países específicos – segundo a Unicef,
há nos Estados Unidos cem mil prostitutas infantis; na Colômbia, de cada cem
crimes, noventa e sete ficam impunes; não é necessário ser politólogo para
constatar como os políticos mudam de
idéia e de partido com inesperada rapidez – eles parecem servir à perfeição
para cada um dos países latino-americanos. Porque os males que os afligem são
comuns, ainda que um ou outro possa, ingenuamente, julgar-se superior aqueles
que o rodeiam. Assim, a impunidade, o roubo, a subserviência às nações ricas, a
corrupção, a indução desenfreada ao consumo, o poder sem freios de alguns que
os fazem donos da vida de seus conterrâneos e das riquezas do país.
Em
recente guerra entre Equador e Peru, os soldados mortos eram todos índios; de
índios eram os exércitos que arrasaram as comunidades indígenas da Guatemala; o
generalíssimo Leónidas Trujillo, mulato, mandou matar, em 1937, vinte e cinco
mil negros no Haiti; em 1992, a polícia do Estado de São Paulo matou,
oficialmente, quatro pessoas por dia. São exemplos de que a vontade de uns
prevalecem de maneira irreversível sobre a da grande maioria que,
historicamente, é silenciosa e sem defesa.
Também,
sempre, nos países latino-americanos há os que se arvoram em seus
proprietários, permitindo-se, então, deles dispor. Meu país é um produto, eu ofereço um produto que se chama Peru, disse, em várias oportunidades, Alberto
Fujimori, um, entre os demais, que viajam pelo mundo como vendedores ambulantes de algo que não é seu. Dessa maneira, foi
vendida a Aerolíneas Argentinas; também, desse modo, foi vendida a Telebrás,
empresas que davam lucro e que passaram a pertencer a terceiros em detrimento
do país porque assim o quiseram, certamente por discutíveis razões, os que
detêm o poder que lhes foi conferido pelo povo.
Na
verdade, esse todo que origina pobrezas e riquezas injustificáveis é comandado
pelo “norte” cujos crimes se mascaram sob um palavrório que é negado pelo
resultado das estatísticas: é o vinte e
cinco por cento da humanidade quem comete
o setenta e cinco por cento dos
crimes contra a natureza. E as conseqüências, como é possível imaginar, se
abatem sobre os mais pobres e desprotegidos.
No
capítulo “A impunidade dos exterminadores do Planeta” os fatos que enumera
Eduardo Galeano são de estarrecer e, para qualquer bem pensante, até podem
parecer inacreditáveis. Como o documento para uso interno do Banco Mundial que,
por descuido foi publicado. O economista Lawrence Summers o assina e nele
propõem que a instituição, para a qual trabalha, estimule a migração das
indústrias poluentes e de desperdícios tóxicos para os países menos
desenvolvidos. As vantagens, levando em conta os lucros, seriam três: os salários raquíticos, os grandes espaços
onde ainda fica muito por contaminar e a escassa incidência de câncer nos
pobres que tem o costume de morrer cedo
e de outras causas.
A
divulgação do documento causou alvoroço – certas coisas não devem ser escritas
– mas, na verdade, oferecem um conselho desnecessário, pois tal prática já
vinha sendo utilizada: o “sul”, há muitos anos, já vem funcionando como lixeira
do “norte”.
Patas arriba. La escuela del mundo al revés
é um livro – perdoe-se o lugar comum – de leitura obrigatória. A minoria do Continente, essa que é
alfabetizada e que sabe, também, ler nas entrelinhas, certamente, a ele terá
acesso. Os demais, os alfabetizados que
não lêem (e quantos da classe média aí estão concernidos) e os analfabetos, nem
chegarão a saber que existe. E, todos, ainda que por razões diferentes,
permanecerão neutralizados, impedidos de se fazer ouvir, de exigir seus
direitos.
Daí,
ficar claro o quanto o saber também concede direitos e porque é tão cara aos
governantes latino-americanos a ignorância. Ao permitir-lhes se esconder sob o
que tem por hábito chamar de democracia, a contumaz ausência de conhecimentos e
de informações do povo que governam lhes possibilitam incontáveis privilégios.
São
eles que irão explicar esses desmandos que o livro de Eduardo Galeano põe a nu,
resultando numa leitura profundamente acabrunhante e desalentadora. Porque,
embora seus dois últimos textos convidem “ao delírio” de querer impossíveis
(segundo os parâmetros vigentes) e à razão que levaria a colocar as coisas no
seu lugar, tudo o que foi dito antes é demasiado grave para que seja possível a
esperança. Para que ela possa existir, seria necessário que a todos os
latino-americanos fosse dado o direito do conhecimento e da informação para que
soubessem o que, verdadeiramente, almejam para o seu país e tenham vontade e
força de por isso lutar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário