domingo, 17 de janeiro de 1999

Do direito de saber

                   

O mesmo sistema de poder que fabrica a       pobreza é o que declara a guerra sem quartel aos desesperados que origina. Eduardo Galeano.
           Alguns alfabetizados sabem bastante; outros tantos, apenas algo e a grande maioria, tudo
ignora. Porque tais informações somente se encontram em alguns escritos que ficam presos em bibliotecas ou em livrarias e, é sabido, são reservados para poucos. No entanto, deveriam ser do conhecimento de todos, tudo aquilo que diz Eduardo Galeano no seu último livro Patas arriba. La escuela del mundo al revés. Publicado no fim de 1998, em Montevidéu, nele são expostos os absurdos e as atrocidades que regem o mundo de hoje.  Breves textos, introduzidos por um título-tema e o mapa da fome, da exploração, do analfabetismo, da miséria, da doença, do medo, da perseguição, vai se delineando. Nas letras de música, nas pichações feitas nos muros, nas  palavras que a entrevista recolhe, nos dados fornecidos pelas notícias de jornal, nas informações contidas nos livros.
             Embora exemplos e dados e números se refiram a países específicos – segundo a Unicef, há nos Estados Unidos cem mil prostitutas infantis; na Colômbia, de cada cem crimes, noventa e sete ficam impunes; não é necessário ser politólogo para constatar como os políticos  mudam de idéia e de partido com inesperada rapidez – eles parecem servir à perfeição para cada um dos países latino-americanos. Porque os males que os afligem são comuns, ainda que um ou outro possa, ingenuamente, julgar-se superior aqueles que o rodeiam. Assim, a impunidade, o roubo, a subserviência às nações ricas, a corrupção, a indução desenfreada ao consumo, o poder sem freios de alguns que os fazem donos da vida de seus conterrâneos e das riquezas do país.

              Em recente guerra entre Equador e Peru, os soldados mortos eram todos índios; de índios eram os exércitos que arrasaram as comunidades indígenas da Guatemala; o generalíssimo Leónidas Trujillo, mulato, mandou matar, em 1937, vinte e cinco mil negros no Haiti; em 1992, a polícia do Estado de São Paulo matou, oficialmente, quatro pessoas por dia. São exemplos de que a vontade de uns prevalecem de maneira irreversível sobre a da grande maioria que, historicamente, é silenciosa e sem defesa.

               Também, sempre, nos países latino-americanos há os que se arvoram em seus proprietários, permitindo-se, então, deles dispor. Meu país é um produto, eu ofereço um produto que se chama Peru, disse, em várias oportunidades, Alberto Fujimori, um, entre os demais, que viajam pelo mundo como vendedores ambulantes de algo que não é seu. Dessa maneira, foi vendida a Aerolíneas Argentinas; também, desse modo, foi vendida a Telebrás, empresas que davam lucro e que passaram a pertencer a terceiros em detrimento do país porque assim o quiseram, certamente por discutíveis razões, os que detêm o poder que lhes foi conferido pelo povo.

               Na verdade, esse todo que origina pobrezas e riquezas injustificáveis é comandado pelo “norte” cujos crimes se mascaram sob um palavrório que é negado pelo resultado das estatísticas: é o vinte e cinco por cento da humanidade quem comete  o setenta e cinco por cento dos crimes contra a natureza. E as conseqüências, como é possível imaginar, se abatem sobre os mais pobres e desprotegidos.

                No capítulo “A impunidade dos exterminadores do Planeta” os fatos que enumera Eduardo Galeano são de estarrecer e, para qualquer bem pensante, até podem parecer inacreditáveis. Como o documento para uso interno do Banco Mundial que, por descuido foi publicado. O economista Lawrence Summers o assina e nele propõem que a instituição, para a qual trabalha, estimule a migração das indústrias poluentes e de desperdícios tóxicos para os países menos desenvolvidos. As vantagens, levando em conta os lucros, seriam três: os salários raquíticos, os grandes espaços onde ainda fica muito por contaminar e a escassa incidência de câncer nos pobres que tem  o costume de morrer cedo e de outras causas.

                A divulgação do documento causou alvoroço – certas coisas não devem ser escritas – mas, na verdade, oferecem um conselho desnecessário, pois tal prática já vinha sendo utilizada: o “sul”, há muitos anos, já vem funcionando como lixeira do “norte”.

                Patas arriba. La escuela del mundo al revés é um livro – perdoe-se o lugar comum – de leitura obrigatória.  A minoria do Continente, essa que é alfabetizada e que sabe, também, ler nas entrelinhas, certamente, a ele terá acesso. Os demais, os alfabetizados  que não lêem (e quantos da classe média aí estão concernidos) e os analfabetos, nem chegarão a saber que existe. E, todos, ainda que por razões diferentes, permanecerão neutralizados, impedidos de se fazer ouvir, de exigir seus direitos.

                 Daí, ficar claro o quanto o saber também concede direitos e porque é tão cara aos governantes latino-americanos a ignorância. Ao permitir-lhes se esconder sob o que tem por hábito chamar de democracia, a contumaz ausência de conhecimentos e de informações do povo que governam lhes possibilitam incontáveis privilégios.

                  São eles que irão explicar esses desmandos que o livro de Eduardo Galeano põe a nu, resultando numa leitura profundamente acabrunhante e desalentadora. Porque, embora seus dois últimos textos convidem “ao delírio” de querer impossíveis (segundo os parâmetros vigentes) e à razão que levaria a colocar as coisas no seu lugar, tudo o que foi dito antes é demasiado grave para que seja possível a esperança. Para que ela possa existir, seria necessário que a todos os latino-americanos fosse dado o direito do conhecimento e da informação para que soubessem o que, verdadeiramente, almejam para o seu país e tenham vontade e força de por isso lutar.

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