domingo, 28 de agosto de 1994

A alma escondida

          Um poema de Memorial de Isla Negra começa com um peremptório e certamente polêmico verso: Que bom é todo o mundo! Então, Pablo Neruda enumera nomes de pessoas boas e torna quase lei essa bondade que ele atribui a todos, embora lhe ocorra que, talvez, somente tenha lhe tocado conviver com o bom grão ou com aqueles que, impenetráveis, não se deixam ver na sua bondade.

          Diante de irrefutáveis provas de atos que possam contradizer suas certezas, Pablo Neruda continua a acreditar na qualidade que é negada por aquele que comete um crime ou que insulta os outros. Daí, ele concluir que há muito que arrumar neste mundo, / para provar que todos somos bons / sem ser preciso se esforçar: não podemos / transformar a bondade em pugilato. / Assim ficariam despovoadas / as ci­dades, onde / cada janela esconde com cuidado / os olhos que nos buscam e não vemos.

          Esse mesmo olhar de Pablo Neruda que percebe o segredo dos homens, que explica a bondade do criminoso como uma avareza do sentimento não entregue irá se pousar no ina­nimado e descobrir-lhe o frêmito escondido.

          Como um ser mítico, o poeta descobre a vida nesse suceder de riquezas que se exibe no mercado e como que um detentor de poderes mágicos, pela palavra faz com que re­nasçam em tons, em perfumes.

          Pablo Neruda sugere e insinua ao descrever esse micro universo de legumes e de frutas numa retórica ex­tremamente afetiva. Emergem do prosaico anonimato do mercado como seres especiais não somente possuidores de cor e de aroma como de uma hierarquia que lhes é concedida por elemen­tos antropomórficos. Assim, é caracterizado o queijo: Não veio aqui só para ser vendido: / veio para mostrar o dom de sua matéria, / sua compacta inocência, / o espessor materno de sua geologia. Assim, é caracterizado o vinho, sempre be­ligerante, áspero e vermelho, ou a apressada alface, o risonho tomate, a pálida maçã.

          No âmago do homem que se revela para o poeta pura polpa de fruta, na brevidade dessas pequenas existências - e a cenoura, e o nabo, e a menta, e a batata - o poeta en­contra uma fonte de inspiração que se inscreve na essência dos seres.

          É um poetar que encontra desconhecidos tesou­ros na alma dos homens e algo de humano nas frutas, nos legu­mes, nos queijos e nos vinhos que se exibem no cotidiano do mercado.

          Feito de verdades ou de invenções, talvez se­jam versos que testemunhem além dos limites da razão. Ou, apenas mostrem o que escondem os homens nos seus invólucros humanos e o que não é percebido nos frutos da natureza.

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