domingo, 4 de setembro de 1994

O doutor e o coronel

 
          Talvez ou, quem sabe, certamente, outras pa­lavras e intenções possam ser lidas nas últimas linhas de Pe­dra da memória: [...] na cozinha, a governanta dá ordens para a próxima refeição: além das gaúchas costelas de ovelha, ela manda incluir, por determinação do Doutor, vários pratos da culinária do Brasil. De agora em diante farão parte de todas as mesas, banquetes, jantares do Castelo no Pampa.

          Republicano, ao retornar da Europa para um Bra­sil que se tornara republica às pressas, se vê marginalizado pelo Poder: O amigo deve voltar para o Rio Grande. Lá é o seu chão. A Republica precisará muito de seu formidável ta­lento..., ordena um dos recentes ministros. E volta o Doutor Olimpio para recusar o governo do Município que os novos administradores lhe oferecem sabendo, porém   que seu destino é outro, maior, um destino na­cional.

          No romance da trilogia Um castelo no Pampa de Luiz Antonio de Assis Brasil (Mercado Aberto de Porto Ale­gre), esse destino não se concretiza.Tampouco no Rio Grande ele encontra o seu lu­gar, opondo-se à política dos dirigentes e justifica-se, ar­gumentando que ajuda o país ao introduzir práticas modernas de criação de gado nas suas terras.E, é em nome do progresso que irá deitar abaixo a velha casa da fazenda para construir o castelo, um estranho enclave que procura a civilização para abrigar uma verdadeira condessa austríaca.Charlotte von Spiegel-Herb chega ao Porto de Rio Grande e após uma viagem de trem, finalmente à fazenda onde a esperam, além das homenagens com as cores da Áustria, uma fileira de empregadas com impecáveis uniformes brancos e ramos de rosas.Mas a sua convicta certeza, ao se sentar à mesa para jantar de que a arte da civilização prova-se no campo, choca-se com a insolência da cozinheira que, explo­rando cia em coisas da terra, serve-lhe durante três dias, espinhaço duro de ovelha com pirão.

          E foi, então, substituída por Zulmira Pacheco que se iniciara nas lides da cozinha num obscuro cabaré-restau­rante de Rio Grande e foi se aperfeiçoando até chegar à cozi­nheira do melhor hotel da cidade.

          Hospedava estancieiros e políticos, exporta­dores de charque, sebo e crina e comandantes de navios es­trangeiros. O salão de refeições tinha espelho no teto e lus­tres de cristal. E Zulmira, na cozinha toda branca, passou a reinar no preparo dos peixes e frutos do mar, aprendendo no­vas receitas ora com os fregueses, ora inventando receitas próprias, aprendendo em livros ingleses e franceses que al­guém lia para ela e até, pagando a cozinheira mais velha para aprender a fazer massas.
          No Castelo, onde chegou numa tarde de calor, se enterneceu ao ver a cozinha de azulejos portugueses e du­rante trinta anos nela pontificou tão sábia que a lenda da Condessa por vezes confundia-se com a lenda de sua mesa.

          Os ensopados de ovelha que eram servidos ao Doutor haviam ficado para trás. Na mesa do Castelo passam a se mostrar guardanapos de linho, os pratos de porcelana, os cálices, os finger bowls. E o Doutor Olimpio e sua mulher jantavam, vestidos a rigor, na grande mesa.

          Quando o coronel Nicácio Fagundes, com seus homens e seu estado maior solicita pouso é recebido por um Doutor Olimpio de fraque, cartola e luvas que não se ame­dronta com os quase dois metros de altura do outro vestido com poncho de lã e que reluta em se acomodar na biblioteca onde os tapetes e as porcelanas pertencem a outro universo. E quando o faz, suas botas embarradas esmagam os delicados mo­tivos persas e suas mãos se pousam no croché branquíssimo que protege os braços das poltronas.

          Na mesa de jantar, o Coronel recomenda a seus homens cuidado com a louça e elogia Muito bonito isso tudo. Mas, quando chega a carne, eles dispensam os talheres e com as mãos a levam aos dentes. A condessa os imita e com a ponta dos dedos leva um fiapo de carne à boca, vencida pelos costumes da terra.

          São selvagens mas pitorescos lhe dissera o marido ao convidá-la para os conhecer.Foi o melhor que soube dizer sobre o Coronel que, pouco antes, recusando um vinho do Porto que lhe era oferecido pelo anfitrião, explicava: Não posso beber quando meus homens estão lá fora passando frio.

          O Doutor talvez não tenha compreendido a frase embora ao passear a cavalo, pelas suas propriedades, com a mulher, sempre se vestisse como os gaúchos. Embora to­masse mate e reafirmasse sempre o seu amor pelo Rio Grande.

          Mas, com certeza, um Rio Grande feito a sua medida e para lhe pertencer.

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