domingo, 11 de setembro de 1994

Depois do dia 11

          Ainda era setembro e houve quem se preocu­passe em agradecer a Deus por acontecimentos que - é preciso crer - nada tinham a ver com a vontade divina.

          O Te Deum foi efetivamente realizado e não lhe faltaram assistentes embora para muitos dos chilenos des­ses dias de 1973 cabia somente pedir por justiça.

          Três anos depois, a revista Papeles de Son Armadans publica “Sobre la ausencia”. Um texto em que se jus­tapõem uma ácida crônica de fatos e uma ficção delirante que somente parecem ser possíveis no Continente.

          Carlos Droguett o iniciou em 31 de agosto de 1975, ainda em Santiago do Chile, e o deu por terminado no dia 31 de julho de 1976 quando já se encontrava no seu exílio europeu.
 
          Nesse mesmo ano, Camilo José Cela o inseriu na revista que dirige em Palma de Mallorca e, no início de 1977, foi, outra vez, publicado pela revista Casa de las Amé­ricas de Cuba.

          Como tudo o que escreve Carlos Droguett, trata-se de um texto profundamente comprometido com a reali­dade de seu país. Em “Sobre la ausência” ele não se afasta da realidade chilena que nesses anos estremeceu o mundo, ao re­criá-la, pela palavra, é como se efetivamente estivesse a elaborar uma espantosa obra de ficção.

          A dedicatória que precede o texto, registra a tortura e morte infligida pelo Sistema instaurado no Chile em 11 de novembro de 1973, a Ignacio Osso, poeta, dramaturgo e docente da Universidade Católica de Santiago. Nela, constar que Ignacio Osso foi encontrado nu, martirizado, sem unhas e sem olhos permite acreditar ser perfeitamente possível a rea­lização de um ritual de ação de graças ao Senhor pelo sucesso obtido nessas práticas, bem menos santas, que passaram a as­solar o país de ponta a ponta e cujos antecedentes foram re­lembrados por Carlos Droguett ao esboçar o perfil dos três ex-presidente do Chile que prestigiavam, com suas presenças, o Te Deum.

          Cada um deles ordenando ou permitindo a vio­lência oficial sobre a população marginalizada a fim de pro­teger o interesse de uma elite ou dos estrangeiros que espo­liavam o país, submissos à vontade dos outros ou às suas pró­prias e desenfreadas conveniências.São retratos acabados de personagens dos quais o ficcionista não elude nomes, nem traços de caráter, nem os atos mais infames, num testemunho implacável e impres­cindível para completar essa História do Continente sempre tão cheia de comprometidos silêncios.

          Logo, abandonando abruptamente a crônica dos fatos com seus personagens, o texto de Carlos Droguett parece explodir numa imaginação sem limites. Que, no entanto, não está distante, naquilo que descreve, do que era uma realidade para milhares de chilenos nesses violentos e renovados dias de perseguições, de mortes, de terror.

          Os mandantes da execução do Presidente e de tudo o que se seguiu, são os personagens que passam então a atuar - e só eles - em meio aos que lotavam o templo. Não de maneira usual e de acordo com o ritual religioso que continu­ava o seu curso, mas em conseqüência do pavoroso inesperado que se inseriu na cerimônia; precisamente num de seus momen­tos mais solenes.
 
           Ao ser distribuída a comunhão, da boca desses personagens, mandantes das atrocidades, brotaram jorros de sangue. Aterrorizados e grotescos, eles, então, se submergem no seu susto e no seu medo e sangue e excremento se misturam, fazendo com que se repita no templo em festa e sob o signo do fantástico o que ocorria nos subterrâneos do Sistema.
Na verdade que registra e naquela que in­venta, cabe uma irrefutável denúncia e essa constante paixão pela justiça que o escritor chileno transforma nos mais lúci­dos e perfeitos textos do Continente.

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