Ainda era setembro e houve
quem se preocupasse em agradecer a Deus por acontecimentos que - é preciso
crer - nada tinham a ver com a vontade divina.
O Te Deum foi efetivamente
realizado e não lhe faltaram assistentes embora para muitos dos chilenos desses
dias de 1973 cabia somente pedir por justiça.
Três anos depois, a revista Papeles de Son Armadans publica “Sobre
la ausencia”. Um texto em que se justapõem uma ácida crônica de fatos e uma
ficção delirante que somente parecem ser possíveis no Continente.
Carlos Droguett o iniciou em
31 de agosto de 1975, ainda em Santiago do Chile, e o deu por terminado no dia
31 de julho de 1976 quando já se encontrava no seu exílio europeu.
Nesse mesmo ano, Camilo José
Cela o inseriu na revista que dirige em Palma de Mallorca e, no início de 1977,
foi, outra vez, publicado pela revista Casa
de las Américas de Cuba.
Como tudo o que escreve
Carlos Droguett, trata-se de um texto profundamente comprometido com a realidade
de seu país. Em “Sobre la ausência” ele não se afasta da realidade chilena que
nesses anos estremeceu o mundo, ao recriá-la, pela palavra, é como se
efetivamente estivesse a elaborar uma espantosa obra de ficção.
A dedicatória que precede o
texto, registra a tortura e morte infligida pelo Sistema instaurado no Chile em
11 de novembro de 1973, a Ignacio Osso, poeta, dramaturgo e docente da
Universidade Católica de Santiago. Nela, constar que Ignacio Osso foi
encontrado nu, martirizado, sem unhas e sem olhos permite acreditar ser
perfeitamente possível a realização de um ritual de ação de graças ao Senhor
pelo sucesso obtido nessas práticas, bem menos santas, que passaram a assolar
o país de ponta a ponta e cujos antecedentes foram relembrados por Carlos
Droguett ao esboçar o perfil dos três ex-presidente do Chile que prestigiavam,
com suas presenças, o Te Deum.
Cada um deles ordenando ou
permitindo a violência oficial sobre a população marginalizada a fim de proteger
o interesse de uma elite ou dos estrangeiros que espoliavam o país, submissos
à vontade dos outros ou às suas próprias e desenfreadas conveniências.São retratos acabados de
personagens dos quais o ficcionista não elude nomes, nem traços de caráter, nem
os atos mais infames, num testemunho implacável e imprescindível para
completar essa História do Continente sempre tão cheia de comprometidos
silêncios.
Logo, abandonando
abruptamente a crônica dos fatos com seus personagens, o texto de Carlos
Droguett parece explodir numa imaginação sem limites. Que, no entanto, não está
distante, naquilo que descreve, do que era uma realidade para milhares de
chilenos nesses violentos e renovados dias de perseguições, de mortes, de
terror.
Os mandantes da execução do
Presidente e de tudo o que se seguiu, são os personagens que passam então a
atuar - e só eles - em meio aos que lotavam o templo. Não de maneira usual e de
acordo com o ritual religioso que continuava o seu curso, mas em conseqüência
do pavoroso inesperado que se inseriu na cerimônia; precisamente num de seus
momentos mais solenes.
Ao ser distribuída a
comunhão, da boca desses personagens, mandantes das atrocidades, brotaram
jorros de sangue. Aterrorizados e grotescos, eles, então, se submergem no seu
susto e no seu medo e sangue e excremento se misturam, fazendo com que se
repita no templo em festa e sob o signo do fantástico o que ocorria nos
subterrâneos do Sistema.
Na verdade que registra e
naquela que inventa, cabe uma irrefutável denúncia e essa constante paixão
pela justiça que o escritor chileno transforma nos mais lúcidos e perfeitos
textos do Continente.
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