No seu texto “Sobre la ausencia”, publicado em 1976 na revista Papeles de Son Armadans de Palma de Mallorca, partindo de um fato real, um Te Deum rezado a mando dos que depuseram Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, o romancista chileno Carlos Droguett assume duas vozes: a de um ferino cronista e a de um narrador ficcional.
Uma fotografia, a que
documenta o evento - mostrando entre a assistência, Gabriel González, Jorge
Alessandri e Eduardo Frei, ex-presidentes do Chile - deu a Carlos Droguett
pertinentes razões para presumir o estado de espírito em que eles se achavam
durante e a cerimônia e o levou a esboçar a biografia de cada um. Lembra circunstâncias
decisivas que, não somente lhes nortearam a formação como explicam atos de
seus governos que provocaram matanças quando gente do povo reivindicou seus
direitos, como as ocorridas em 1962, 1966 e 1969, e que o escritor retoma
detalhadamente.
Um denominador comum se
estabelece entre os três ex-presidentes que iniciaram no Chile as trilhas da repressão
e os que destituíram um presidente eleito pelo voto, instalando perseguições,
torturas e mortes no país.
Essa identidade demonstrada
no apoio dado publicamente, quando do Te Deum, aos que assumiram o governo e o
paradoxo em querer dar graças a Deus por atrocidades que eles mesmos cometeram,
leva o ficcionita a recruar a cerumônia, fazendo dela uma sucessão de momentos escatológicos e cheios de espanto e mais em acordo com o que estava acoantecendo então.\
Da crônica que se alimenta
de fatos, Carlos Droguett envereda pelo caminho do fantástico porque somente o
que foge da ordem lógica pode permitir que os sons emitidos nos subterrâneos da
tortura - vozes rebeldes proibidas, clamores populares, estertores da morte -
preencham o espaço do templo em que se realiza o Te Deum; que da boca dos
principais responsáveis pelo golpe que derrubou Salvador Allende brotem
golfadas de sangue e que o próprio Cristo, num esforço tremendo, se desprenda
da cruz em meio a surpreendentes ruídos de madeira arrebentada, manifeste -
muito humanamente - o seu asco por essa devoção mascarando crimes que era
obrigado a suportar.
Entrelaçando aproximações e
distanciamentos ao se desdobrar num narrador objetivo que se atém ao que vê,
num outro, todo-poderoso para o qual não há segredos e, ainda, naquele que, ao
assumir uma primeira pessoa do plural se situa entre os que se negam a aceitar
como verdadeiro o que aconteceu, o ficcionista, gradativamente, vai dando a conhecer
o que, para os donos do Poder, administrativamente
não foi mais do que um incidente.
Assim, na ficção droguetiana,embora haja certezas - todos viram o sangue
brilhar entre os dourados do altar e todos escutaram o primeiro grito - também
são mencionadas a descrença de alguns, as versões contraditórias de outros e a
impossibilidade de ser lembrado com exatidão, algum detalhe.
Mas o silêncio que acabou
dominando jornais e estações de televisão, as categóricas afirmações de que
tudo não passava de histeria coletiva, a convicção de que os movimentos de
Cristo para se liberar da cruz foram simples ilusão devido ao jogo de sombras
quando sem nenhuma razão as velas do altar se apagaram, não foram suficientes
para anular os fatos.
O templo, porém, foi fechado
para reparos e nenhum órgão da imprensa se ocupou do que ali havia acontecido
ainda que insólito, inesperado, incrível.
Como se ao silenciar e ao
negar os fatos eles tivessem deixado de existir.
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