domingo, 18 de setembro de 1994

Dos indígnos


          No seu texto “Sobre la ausencia”, publicado em 1976 na revista Papeles de Son Armadans de Palma de Mallorca, partindo de um fato real, um Te Deum rezado a mando dos que depuseram Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, o romancista chileno Carlos Droguett assume duas vozes: a de um ferino cronista e a de um narrador ficcional.

          Uma fotografia, a que documenta o evento - mostrando entre a assistência, Gabriel González, Jorge Ales­sandri e Eduardo Frei, ex-presidentes do Chile - deu a Carlos Droguett pertinentes razões para presumir o estado de espí­rito em que eles se achavam durante e a cerimônia e o levou a esboçar a biografia de cada um. Lembra circunstâncias decisi­vas que, não somente lhes nortearam a formação como explicam atos de seus governos que provocaram matanças quando gente do povo reivindicou seus direitos, como as ocorridas em 1962, 1966 e 1969, e que o escritor retoma detalhadamente.

          Um denominador comum se estabelece entre os três ex-presidentes que iniciaram no Chile as trilhas da re­pressão e os que destituíram um presidente eleito pelo voto, instalando perseguições, torturas e mortes no país.

          Essa identidade demonstrada no apoio dado pu­blicamente, quando do Te Deum, aos que assumiram o governo e o paradoxo em querer dar graças a Deus por atrocidades que eles mesmos cometeram, leva o ficcionita a recruar a cerumônia, fazendo dela uma sucessão de momentos escatológicos e cheios de espanto e mais em acordo com o que estava acoantecendo  en­tão.\

          Da crônica que se alimenta de fatos, Carlos Droguett envereda pelo caminho do fantástico porque somente o que foge da ordem lógica pode permitir que os sons emitidos nos subterrâneos da tortura - vozes rebeldes proibidas, cla­mores populares, estertores da morte - preencham o espaço do templo em que se realiza o Te Deum; que da boca dos princi­pais responsáveis pelo golpe que derrubou Salvador Allende brotem golfadas de sangue e que o próprio Cristo, num esforço tremendo, se desprenda da cruz em meio a surpreendentes ruí­dos de madeira arrebentada, manifeste - muito humanamente - o seu asco por essa devoção mascarando crimes que era obrigado a suportar.

          Entrelaçando aproximações e distanciamentos ao se desdobrar num narrador objetivo que se atém ao que vê, num outro, todo-poderoso para o qual não há segredos e, ainda, naquele que, ao assumir uma primeira pessoa do plural se situa entre os que se negam a aceitar como verdadeiro o que aconteceu, o ficcionista, gradativamente, vai dando a co­nhecer o que, para os donos do Poder, administrativamente não foi mais do que um incidente. Assim, na ficção droguetiana,embora haja certezas - todos viram o sangue brilhar entre os dourados do altar e todos escutaram o pri­meiro grito - também são mencionadas a descrença de alguns, as versões contraditórias de outros e a impossibilidade de ser lembrado com exatidão, algum detalhe.

          Mas o silêncio que acabou dominando jornais e estações de televisão, as categóricas afirmações de que tudo não passava de histeria coletiva, a convicção de que os movi­mentos de Cristo para se liberar da cruz foram simples ilusão devido ao jogo de sombras quando sem nenhuma razão as velas do altar se apagaram, não foram suficientes para anular os fatos.
 
          Deles ficaram as evidências: o braço da cruz, violentamente arrancado e quebrado, no chão, com seus pregos retorcidos e ensangüentados e a infamante coroa de es­pinhos manchada de sangue fresco e de vômitos [...]. O san­gue, o muito sangue que encharcava grande parte da balaus­trada de mármore, a saber, aquela em que tinham se reclinado os três generais e o almirante, os genuflexórios e também os assentos e, inclusive, o pedaço de chão em que, provisoria­mente, tinham se ajoelhado para comungar, provinha ou manava não da sagrada forma, mas dos quatro uniformizados.

          O templo, porém, foi fechado para reparos e nenhum órgão da imprensa se ocupou do que ali havia aconte­cido ainda que insólito, inesperado, incrível.

        Como se ao silenciar e ao negar os fatos eles tivessem deixado de existir.

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