domingo, 21 de agosto de 1994

O diálogo interessante

           Nas literaturas da América o gênero gau­chesco se constitui um fenômeno singular dizem Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares no prólogo à Poesia Gauchesca, publicada pela Fondo de Cultura Economica do México, acres­centando que os que a quiseram explicar se limitaram a rela­cioná-la com o seu protagonista, o gaúcho.

           Na verdade, é ao redor do gaúcho que se situa a sua gênese: manifestação oral ligada à música e à dança, tendo como motivos as vivências do homem do pampa.

           Foi Bartolomé Hidalgo, poeta uruguaio que vi­veu entre 1788 e 1822, quem lhe deu a forma impressa. Inspi­rando-se nas estrofes populares que os sitiadores da cidade de Montevidéu gritavam, juntamente com os impropérios, aos espanhóis que eles queriam expulsar de suas terras, os poemas de Bartolomé Hidalgo traduzem um entusiasmo patriótico e uma ojeriza contra os colonizadores, certamente decisivos para torná-lo conhecido na época; e para lhe assegurar o lugar de precursor no gênero que atravessaria os anos e as escolas li­terárias sem ser vencido pela exaustão nem pela crítica.

           Num momento historicamente e socialmente con­turbado do Uruguai, seus poemas assumem a voz dos que buscam a emancipação do país, isto é, assumem uma voz coletiva nos “cielitos”, composição poética e musical muito difundida nos países do Prata no começo do século passado.

           São versos que se constituem um modelo do que o crítico Angel Rama irá definir como manifestação espontâ­nea do uso da poesia como sistema de provocação e comunicação política. Logo, porém, irão expressar a desilusão diante do resultado das lutas que serviram apenas para garantir, uma vez mais, os privilégios de alguns.

           Então, escreve, em 1821 e 1822, três longos poemas, os “diálogos patrióticos”.

           O primeiro deles tem por título “Diálogo pa­triótico interessante”. Dois são os interlocutores, os gaú­chos Jacinto Chano e Ramón Contreras.

           O poema se inicia com o ritual do encontro e da hospitalidade para, então, surgir o tema do diálogo: a si­tuação do país, um país degradado por rivalidades vãs e neu­tralizadoras de um esforço que deveria conduzir ao progresso que fora impedido pelo domínio da Espanha. Um país recém cri­ado mas onde as leis nascentes já eram infringidas.

           Admira-se Contreras: Pois sempre ouvi dizer / que diante da lei eu era / igual a todos os homens. Pala­vras que terão, como resposta de Chano a explicação desse tão conhecido costume do Continente: o pobre que rouba algumas esporas, um cavalo velho, algum dinheiro, é preso para cum­prir a lei.

           Disso eu me alegro diz Chano. Quem tal fez, tal pague, / mas vamos a um figurão / pois por casualidade / já se vê, se remediou... / um descuido que acontece a qual­quer um. / No começo, muito barulho, / muito embargo, pro­cesso, prisão, / segredos, admiração. / Que declara? Que é mentira / que ele é um homem de bem / E o dinheiro? Não se sabe, / O Estado o perdeu. / O preso sai para a rua / e o caso se acabou. / E isto se chama igualdade?

           Constatações que mostram como os velhos com­batentes gaúchos foram transformados em meros observadores de acontecimentos que negam os ideais pelos quais haviam lutado.

           Mas que se permitindo confidências, argumen­tações, lamentos fazem desses “diálogos” verdadeiras carti­lhas norteadoras de comportamento cívico.

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