domingo, 7 de agosto de 1994

O inexplicável

  
        Eram muitos irmãos e já estava assente entre eles que havendo visitas à mesa, apenas algum objeto come­çasse a se mover, aquele que estivesse mais próximo lançava-lhe a mão para o imobilizar.Porque, muitas vezes, o saleiro começava a vibrar e deslizava entre os pratos e os copos pela mesa até que Nivea puxasse as tranças de sua filha Clara, conseguindo, assim, que tudo voltasse à normalidade.Clara era menina pequena e, além de fazer mo­ver os objetos, anunciava coisas que iriam acontecer e, logo, elas aconteciam. Diante dos sustos que causava, então, a ama tranqüilizou: Há muitas crianças que adivinham os sonhos e falam com as almas, mas tudo isso passa quando perdem a ino­cência.Para Clara não foi assim. Ainda que proibida pelo pai de perscrutar o futuro nas cartas e invocar espíri­tos brincalhões que assustavam os criados, continuou a ter premonições, anunciando doenças, mortes, terremotos, conti­nuou a mover os objetos, inclusive as teclas do piano sem abrir a tampa e continuou escutando os espíritos.E, assim transcorreu-lhe a vida, prestando atenção nas histórias da mãe e depois, ela própria, contando histórias para sua filha.
 
        O pai procurou esconder-lhe os poderes, a mãe amou-a, aceitando que ela sempre seria assim e, finalmente, o marido compreendeu que seria inútil til a ela se opor.

          Como coisas naturais a seu redor, o inexpli­cável acontecia. E a narrativa desse cotidiano, em que tudo passa a ser possível, é feita pela sua neta, Alba que, anos mais tarde, descobre os cadernos de anotar a vida que, du­rante cinqüenta anos escrevera Clara, claríssima, clarivi­dente.

          Ela não se deixava enganar nem por palavras, nem por gestos. Na igreja, durante o sermão em que o padre ameaçava os fiéis com os piores castigos eternos, levantou sua voz infantil para ousar por em dúvida a existência do in­ferno. Quando acompanha sua mãe e duas amigas, ou três sufra­gistas, na visita às fábricas onde, sobre caixões, discursa­vam para as operárias, percebe o absurdo da situação e es­creve no seu caderno o contraste entre a mãe e as amigas com casacos de pele e botas de camurça, falando de opressão, de igualdade, de direitos para um grupo triste e resignado de operárias com seus aventais grosseiros de pano e as mãos ver­melhas de frieiras.

          Mais tarde, repetindo as visitas que sua mãe fazia aos pobres, agora com a filha pela mão e carregada de presentes, explica: Isto serve para nos tranqüilizar a cons­ciência, filha. Mas, não ajuda os pobres. Não precisam de ca­ridade, mas de justiça.

          Filha do Continente, é submissa a essas for­ças desconhecidas que dela fazem um ser a parte. Filha do Continente, percebe as tristes desarmonias que ensejam pobre­zas e opulências sem poder discernir outras trajetórias que as já existentes.

          Luminosa personagem de La casa de los espíri­tos, o quadro do horror instaurado no Chile dos anos setenta lhe foi negado e morreu antes do sofrimento que, então, ad­veio para sua filha Blanca encurralada pelo medo, para sua neta Alba, vítima da tortura, e, para os muitos outros.

          O romance de Isabel Allende que se iniciara lúdico avança para o testemunho. E o inexplicável passa, como nunca e como tantas vezes a fazer parte da realidade do Con­tinente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário