Eram muitos irmãos e já estava assente entre eles que havendo visitas à mesa, apenas algum objeto começasse a se mover, aquele que estivesse mais próximo lançava-lhe a mão para o imobilizar.Porque, muitas vezes, o saleiro começava a vibrar e deslizava entre os pratos e os copos pela mesa até que Nivea puxasse as tranças de sua filha Clara, conseguindo, assim, que tudo voltasse à normalidade.Clara era menina pequena e, além de fazer mover os objetos, anunciava coisas que iriam acontecer e, logo, elas aconteciam. Diante dos sustos que causava, então, a ama tranqüilizou: Há muitas crianças que adivinham os sonhos e falam com as almas, mas tudo isso passa quando perdem a inocência.Para Clara não foi assim. Ainda que proibida pelo pai de perscrutar o futuro nas cartas e invocar espíritos brincalhões que assustavam os criados, continuou a ter premonições, anunciando doenças, mortes, terremotos, continuou a mover os objetos, inclusive as teclas do piano sem abrir a tampa e continuou escutando os espíritos.E, assim transcorreu-lhe a vida, prestando atenção nas histórias da mãe e depois, ela própria, contando histórias para sua filha.
O pai procurou esconder-lhe os poderes, a mãe amou-a, aceitando que ela sempre seria assim e, finalmente, o marido compreendeu que seria inútil til a ela se opor.Como coisas naturais a seu redor, o inexplicável acontecia. E a narrativa desse cotidiano, em que tudo passa a ser possível, é feita pela sua neta, Alba que, anos mais tarde, descobre os cadernos de anotar a vida que, durante cinqüenta anos escrevera Clara, claríssima, clarividente.
Ela não se deixava enganar
nem por palavras, nem por gestos. Na igreja, durante o sermão em que o padre
ameaçava os fiéis com os piores castigos eternos, levantou sua voz infantil
para ousar por em dúvida a existência do inferno. Quando acompanha sua mãe e
duas amigas, ou três sufragistas, na visita às fábricas onde, sobre caixões,
discursavam para as operárias, percebe o absurdo da situação e escreve no seu
caderno o contraste entre a mãe e as amigas com
casacos de pele e botas de camurça, falando de opressão, de igualdade, de
direitos para um grupo triste e resignado de operárias com seus
aventais grosseiros de pano e as mãos vermelhas de frieiras.
Mais tarde, repetindo as
visitas que sua mãe fazia aos pobres, agora com a filha pela mão e carregada de
presentes, explica: Isto serve para nos
tranqüilizar a consciência, filha. Mas, não ajuda os pobres. Não precisam de
caridade, mas de justiça.
Filha do Continente, é
submissa a essas forças desconhecidas que dela fazem um ser a parte. Filha do
Continente, percebe as tristes desarmonias que ensejam pobrezas e opulências
sem poder discernir outras trajetórias que as já existentes.
Luminosa personagem de La casa de los espíritos, o quadro do
horror instaurado no Chile dos anos setenta lhe foi negado e morreu antes do
sofrimento que, então, adveio para sua filha Blanca encurralada pelo medo,
para sua neta Alba, vítima da tortura, e, para os muitos outros.
O romance de Isabel Allende
que se iniciara lúdico avança para o testemunho. E o inexplicável passa, como
nunca e como tantas vezes a fazer parte da realidade do Continente.
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