domingo, 14 de agosto de 1994

O explicável

          Luiza Mora deu o recado.A morte anda nos teus calcanhares. Tua avó Clara te protege lá do além mas mandou te dizer que os espíritos protetores são ineficazes nos cataclismos maiores. Seria bom se fizesses uma viagem, que fosses para o outro lado do mar onde estarás a salvo.

          Talvez Alba não tenha levado a sério a adver­tência ou talvez não tenha tido tempo ou forças para se sal­var. Ficou e seguiu o seu caminho no tortuoso labirinto que se tornou a vida da cidade, a partir desse 11 de setembro de 1973, que, no romance La casa de los espíritos, é referido com um dia de sol radiante, pouco usual na tímida primavera que despontava.

          As flores, os frutos e a luminosa figura de Clara, levada pela morte, não eram mais habitantes da casa e para trás ficavam sua vida de antes e a invisível vida dos espíritos que rondavam sua avó.

          Alba se viu sozinha para ajudar as pessoas a saírem com vida desses dias de terror então instaurados no país e pagou muito caro por isso. Foi arrancada de sua casa e levada para as prisões do regime e para as câmaras de tor­tura.

          O último capítulo de La casa de los espíritos não elude as humilhações de que foi vítima, nem o sofrimento a que seu corpo foi submetido.

          No capítulo anterior com o título de “O ter­ror”, como um testemunho já havia sido registrado o que acon­tecera naquela terça-feira ensolarada, quando o palácio foi atacado num bombardeio que pôs fim ao primeiro governo socia­lista da América e deu início a um período de repressão que parecia em acordo com a maioria da população.

          De onde tinham saído tantos fascistas do dia para a noite se perguntava Alba porque na longa trajetória democrática de seu país nunca tinham sido notados, exceto al­guns exaltados durante a guerra que por macaquice vestiam ca­misas negras e desfilavam com o braço erguido em meio às gar­galhadas e assovios dos transeuntes.

          Como se o país fosse formado apenas pelos que podiam comprar os produtos importados, pelos que receberam de volta a terra que a reforma agrária havia dividido, pelos que aceitavam como normal que as concessões das minas fossem en­tregues à companhias norte-americanas.

          Aqueles que podiam ignorar os outros que fi­caram sem trabalho, sem comida e sem leis para protegê-los.

          O romance de Isabel Allende é, também, um re­gistro dessa dicotomia que, ou social ou ideologicamente, rege a história do Continente.

          Há nele como uma síntese dessa trajetória, alimentada por um sobrenatural, que lhe dá consolo e espe­rança e por símbolos e ritos que a tornam fadada a jamais se transformar.

          Até porque, há séculos que o Poder se exerce baseado na velha premissa que um dos personagens do romance, convictamente, repete: Pão, circo e alguma coisa para vene­rar é tudo quanto o povo necessita.

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