domingo, 3 de outubro de 1993

Pelos que se chamam João

          Doze dias depois da morte violenta de Salvador Allende na Casa de la Moneda, de Santiago, desaparecia Pablo Neruda. No seu enterro, forças repressivas da ditadura que acabara de se instalar no Chile, queriam impedir a manifestação dos sentimentos de um povo que sempre o homenageara em vida.
 
         Eduardo Galeano, no terceiro volume de sua trilogia Memoria del fuego, conta como o pequeno cortejo fúnebre que saíra para o cemitério, aos poucos vai crescendo: De todas as esquinas aparece gente que se põe a caminhar apesar dos caminhões militares eriçados de metralhadoras e dos guardas e soldados que vão e que vem em motocicletas e carros blindados fazendo barulho, fazendo medo. Atrás de alguma janela, a mão cumprimenta. No alto de alguma sacada, ondula um lenço. Hoje, faz doze dias do quartelaço, doze dias de calar e morrer e por primeira vez se escuta a Internacional no Chile, a Internacional murmurada, gemida, soluçada mais do que cantada até que o cortejo se faça procissão e a procissão se faça manifestação e o povo que caminha contra o medo, comece a cantar pelas ruas de Santiago a plenos pulmões, com voz inteira, para acompanhar, como se deve, ao poeta, seu poeta, na viagem final.
 
          Num dos melhores livros escritos sobre Pablo Neruda, El viajero inmovil, o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal se refere a esses poemas que mal acabados de serem escritos, já eram distribuídos entre aqueles que, no momento, estavam na casa do poeta.

          Versos que passavam, então, a ser uma oferta e que na voz monocórdica de Pablo Neruda, ele nunca se recusou de recitar em fábricas, salas de aula, teatros e jardins. Porque neles também estavam o seu testemunho sobre a pobreza e as maldades e seu desejo de mudanças nessa sociedade latino-americana perversamente estratificada. Queria pão e terra para todos. E escola.
          Por isso teve que fugir muitas vezes e teve que se esconder. Por isso, em 1973, sua casa foi destruída e seu enterro controlado pelos novos donos do país.

          Mas a América que ele almejava ainda não se fez. No seu território, como que semeados à mão cheia, nascem os que se chamam Juan: os que trabalham e mal podem comer, e mal podem se tratar e mal podem estudar. Os que estão sempre em silêncio porque não sabem dizer e porque não tem a quem dizer.
 
Pablo Neruda falou de seus destinos no maltratado Continente.
Nada mudou, mas suas palavras iluminam o século.

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