domingo, 31 de outubro de 1993

Fazer a Conquista 4

          Conta Carlos Droguett que houve aqueles que desejariam ficar, desejariam criar algo de estável, definitivo. Atravessaram o mar e quiseram conquistar as terras.
          Juan Nuñez de Prado saiu de Cuzco com um punhado de homens e algumas provisões para, a mando de La Gasca, governador do Peru, fundar uma cidade.
          Fundou-a e lhe deu assento três vezes. Nos documentos oficiais que registram esses feitos, constam as razões - falta de meios para se defender dos índios, deserções de espanhóis, colheitas más - incitadoras das mudanças.
          A solidão, as angústias, os temores, as dúvidas, que porventura os tenham dominado, se constituíram, no entanto, matéria tão importante para o ficcionista que séculos depois recriou essas vidas e esses caminhos, quanto os episódios que os ensejaram.
          E nessa aventura interior, em que a ficção indaga do desejo de se enraizar e dos sonhos de levantar uma cidade, há, também, o encontro com a incontestável presença do que ficou para trás: breves lembranças que por vezes trazem retalhos de vida passada; um pensar e decidir presos ao Rei e à Religião. Sobretudo, esses inúmeros objetos que, parte de suas vidas, acompanharam os conquistadores, procurando repetir, no Continente, os rituais do Velho Mundo.
          Assim, as lembranças que acodem a Juan Nuñez de Prado desse tempo em que tinha dezoito anos e ainda vivia em Badajoz: Andava solto pelo campo, falando sozinho, com desembaraço sem sofrimento, sem recordações, sem remorsos, chamando os rapazes que brincavam nas eiras, no fundo do vale, desatando a funda e mandando pedras que se afundavam no calor, no trigo, nas flores que esvoaçavam partidas...
          Assim, esse persistente laço que une o executor da vontade do Rei ao Rei que, de além mar, pelo simples desejar, comanda as duras faenas da conquista: Deus e o rei vão juntos na conquista desta terra [...] quando o rei corta um pescoço, Deus cala ou pelo menos, reza.
          Assim, esses objetos que se acumulam nas carretas que transportam a cidade de um assento para outro: portas, janelas, tabique, cadeiras, camas, livros, papéis, espadas, arcabuzes, lanças, mosquetes, pás, picaretas e roupas e móveis.
          Por vezes, das carretas caem e se espalham pelas cidades desfeitas, pelos sulcos que vão abrindo nesse trajeto em busca do definitivo, uma camisa branca de punhos de renda, o pedaço de um móvel, parte de uma porta ou janela.
          Ou, é um olhar que, alongado para o interior de uma casa, percebe parte da vida que existia através dos objetos que ainda restam, ali espalhados: quadros, roupas, borzeguins, um cinto, fivelas e botões, um baralho, mapas, pedaços de armas antigas manchadas de sangue, um pequeno martelo de prata, pratos, xícaras, colheres. E, entre colheres que não viajavam desde que embarcamos no porto escuro, espichou a mão e pegou uma colherinha muito pequena e frágil, como pregador ou enfeite, olhava para ela com curiosidade, sentindo-a grudada nos seus dedos, seguindo o contorno de sua pele e o calor de seu sangue e desejava ficar apegado nela, mexendo a xícara de chocolate ou o caldo de carne.
          Um apego a objetos, a ritos, ao que acreditavam ser indiscutíveis verdades que prendia os homens da Conquista a tudo que fora já vivido.
          Vítimas da opressiva estrutura social do Velho Mundo, atravessaram o oceano enfrentando o desconhecido, os perigos, muitas vezes, a morte.
          O romancista chileno em El hombre que trasladaba las ciudades (Noguer, 1973) imagina o drama desses homens que, desgarrados de suas raízes e ainda sem amar a terra que almejavam possuir, tampouco podiam compreender que nada significavam para aqueles que ordenavam a Conquista e lhes comandava os passos.

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