domingo, 24 de outubro de 1993

Fazer a Conquista 3

           Escutava o longo murmúrio da folhagem luminosa que rumorejava nas sombras, escutava ressoar as marteladas e as machadadas que faziam ranger as árvores, o suave repassar das serras ia alinhavando as árvores distantes e, de repente, no claro silencioso que deixava o traço úmido de uma árvore enorme que caía...
           Os espanhóis construíam as casas, a igreja, abriam as ruas para essa cidade que deviam erguer e que, mal terminada, já o temor do capitão Juan Nuñez de Prado obrigava a levar para mais longe onde tudo era começado outra vez.
           O lugar escolhido, as casas se erguiam. A ameaça dos espanhóis que, partindo do Chile também queriam se apoderar do que era posse da expedição de Juan Nuñez de Prado, o levava a tudo desfazer, a tudo carregar nas carretas e buscar outro lugar.
           Uma prolongada e repetida ação na qual se enovelam os sofrimentos.
           Carlos Droguett, em El hombre que trasladaba las ciudades, que, juntamente com Cien gotas de sangre y docientas de sudor e Supay el cristiano formam a sua chamada “trilogia da conquista”, ao reinventar na ficção essa presença espanhola na América, tanto reinventa o grande feito de heroísmos e vilanias, quanto o drama individual dos que os praticavam.
           Sem se afastar do que foi narrado pelos cronistas oficiais, exemplarmente fiel aos fatos por eles registrados, ao redor desse mundo que ele quis retirar dos arquivos e trazer para a vida, a sua ficção recria um cenário pujante de vida: cascatas, céus cambiantes, ventos, céu e chuva, bosques.
           Na repetitiva escrita em que é construído o romance, acompanhando o fazer e o desfazer da cidade, surgem como relâmpagos, esse ruído de golpes nos troncos, essas imagens das árvores que tombam sob o machado dos invasores: Juan Nuñez de Prado via cada um com um machado na mão, suados e pálidos, como doentes, agarrados à garrafa de vinho, atirar o rosto para trás e enquanto olhava os copos e o vento e o céu nublado, beber com verdadeira ânsia, ele sorria com ousadia, colava seu peito no tronco da árvore, lançava seu rosto, suas mãos nele, sentia o cheiro úmido, acre e doce da madeira partida, cravava mais fundo o machado e tirava um longo talho de perfume, os soldados riam felizes, via seus borzeguins se juntar na madeira, escutava os galhos rangerem...
           São leit-motifs que se incrustram na densa e bela prosa de Carlos Droguett, insistindo em fixar uma destruição tão comovente quanto aquela que atinge os homens que chegam no Continente para destruir.
           Já presente em outros de seus romances, além da inegável e harmoniosa função estilística, o leit-motif que em El hombre que trasladaba las ciudades repete esse tombar de árvores pela mão do homem possui, sem dúvida, outra função: a de não deixar esquecer que a Conquista foi feita, também, de depredação.
           E, embora, se trate de uma breve e esporádica presença, esse recurso do romancista se mostra extremamente valioso.
           Numa obra da qual emergem as emoções humanas, é surpreendentemente instigante que irrompam, também e com extremo lirismo os profundos significados do sofrimento dessas árvores destruídas.

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