Quando a esquadra de Fernão
de Magalhães partiu, no dia 20 de setembro de 1519, de Sanlúcar de Barrameda,
para a viagem que daria a volta ao mundo, o bufão Juanillo Ponce fazia, também,
parte da tripulação. Suas graças haviam divertido os oficiais da Casa de
Contratação de Sevilha, encarregados de engajar os que se propunham partir com
a esquadra. Movido pela necessidade, ao morrer-lhe o amo, se encontrara sem ter
o que comer e onde dormir, então se embarca na louca viagem, da qual, como todos os demais, ignora o rumo.
Três anos depois, chega, com
os outros dezessete sobreviventes, de volta a Sanlúcar. Por contar nas praças e
nas casas as aventuras das cinco naus que haviam partido em busca das
especiarias e por fazer perguntas que não tinham resposta, seu nome foi
retirado da lista dos que faziam jus à pensão do rei.
Para reavê-la, Junillo Ponce
escreve ao velho Imperador Carlos V para lhe dar conta dos muitos prodígios e privações que a viagem lhe
proporcionara e assim convencê-lo a lhe restituir o que merecia. Porque,
argumenta, houve circunstâncias em que suas graças fizeram mais pela moral da empresa que a eloqüência e a paixão dos
capitães.
Seu relato, efetivamente, dá
conta dessa epopéia marítima na qual se perderam quatro barcos e duzentos e
trinta homens. E, quando a esse relato ele acrescenta parcelas de sua vida e
uma e outra de algum companheiro de viagem, a epopéia da circumnavegação se
engrandece, enriquecida por expressões de sentimentos que a tornam,
indubitavelmente, à medida do homem.
Juanillo Ponce é judeu
converso o que já diz na primeira página do romance e, ao longo da narrativa,
disso ele jamais se esquece.
Na verdade, ele não pode se
esquecer desse destino que lhe coube: nascer de mãe judia e licenciosa e de pai
desconhecido; ser levado à prática de um ritual drasticamente imposto; carregar
o peso de um corpo anão e deformado.
Infelicidades que o levam na
infância a querer entender a própria origem nesse obscuro passar de homens pela
cama de sua mãe; mais tarde, ao dever servir uma verdade que nega aquela de seu
avô; e, ainda, ter que ganhar a vida, aproveitando-se da deformidade de seu
corpo.
Questionado pela Inquisição
por afirmar que as crônicas oficiais eram cheias de mentiras e por procurar
seus antigos companheiros de viagem e Beatriz a mulher de seu capitão, morto
num combate em Zubu, foi torturado quatro mil vezes antes de assinar sem ler,
para se livrar dos tormentos, a declaração de que jamais havia estado nessa
viagem em busca das especiarias que deu a volta à Terra.
E, assim, perdeu a pensão à
qual tinha direito. E, assim, perdeu a identidade. Temerosos daqueles que os
julgaram, nenhum dos velhos companheiros concedeu reconhecê-lo e Juanillo Ponce
passou a ser alguém que jamais havia existido.
Narrador de Maluco, romance do uruguaio Napoleón
Baccino Ponce de León, prêmio Casa de las Américas 1989 que acaba de ser
publicado no Brasil pela Companhia das Letras, Juanillo Ponce vítima de seu
nascimento, vítima de sua pobreza, vítima da Inquisição e apenas desejando
receber, por caridade de Carlos V, a pensão a que tem direito, conta o que
aconteceu nessa viagem em busca de Maluco, o arquipélago das especiarias.
E, assim, com seus medos e
alegrias, com sua fome e seu frio na longa viagem marítima cheia de percalços,
remete, ingenuamente, sem maldade, como que sem pensar que pudesse ser
diferente sua vida sob outras leis e sob outros homens, a essa Espanha que lançava
nos mares os seus navios e jogava para os caminhos do exílio, do desespero, do
aniquilamento, seus cidadãos. Aqueles que os governantes acreditavam que deviam
submeter a sua fé e a seus interesses.
No entanto, a voz de
Juanillo Ponce não chega estranha - e a Inquisição, e a injustiça, e os abusos
de poder - neste Continente há 500 anos submetido.

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